sexta-feira, 30 de abril de 2010

Galeano e Carolline

Galeano era um dentista formado há alguns anos. Fazia pós-graduação na área de buco-maxilo e desenvolvia um trabalho de reconstrução dos ossos da face em dois hospitais de sua região. Como complemento, trabalhava em um consultório perto de sua casa. Era casado com Améllia, porém era extremamente infeliz. Tinha se enamorado por ela após a faculdade e casaram-se sob a tutela da família dela. Vinha de uma boa família e rica, sendo que até aquela data vivia da mesada dada pelos seus pais.

Ele se sentia sempre menosprezado por aquela situação, sendo que em qualquer momento poderia ser colocado do apartamento para fora. Não se sentia morador daquele espaço vazio e seu relacionamento com Améllia piorava a passos largos: ela pouco o tratava e sempre fria e distante. Era indiferente aos seus sucessos profissionais, por menores que fossem. Estava arrependido de ter casado, mas não tinha coragem para sair daquela situação.

Gostava de passar sempre em um café perto de sua casa, para espairecer. Tinha o hábito de permanecer ali por aproximadamente uma hora, tempo em que sempre conseguia recarregar as baterias para a batalha no ninho da indiferença. Era uma sexta-feira chuvosa e não havia mesas desocupadas. Sentou-se na cadeira alta do balcão, e fez o seu pedido, com o típico sorriso no rosto e descontração - como se ali ele pudesse ser ele mesmo e se redescobrir feliz.

Sentiu que estava sendo observado, algo por detrás da sua nuca. Virou-se, disfarçadamente, e vislumbrou uma das cenas mais magnetizadoras da sua vida: uma moça de pele branca, com cabelos bem escuros. Neste momento, seus olhares se tocaram. Ela vestia um sobretudo jeans e sacodia seu guarda-chuva, para tirar as gotículas de água que nele estavam aderidas.

A mulher se aproximou dele e o chamou pelo nome. Achou curioso conhecê-lo, provavelmente poderia ser uma de suas pacientes. Algo lhe disse que não era. Ela fitou-o nos olhos e disse-lhe: -"Sou eu, Carol.". Ficou pasmo... Era Carolline, uma velha amiga da sala de aula de Odontologia. Pediu desculpas pela sua indelicadeza por não a tê-la reconhecido e ela retribui com um sorriso e disse apenas que tinha mudado muito desde o tempo da faculdade.

Observando-a retirar o sobretudo e colocá-lo ao seu lado no balcão, notou o porquê de não a ter reconhecido: seus cabelos eram claros e longos, agora estavam escuros e curtos, na altura do pescoço. Percebeu que ela havia adicionado um furo a mais em cada orelha e que tinha tatuado no seu pescoço, na parte interna, uma pequena borboleta. Conheceram-se na faculdade por intermédio de um amigo em comum que a namorava. Era um safado, em sua opinião, pois sempre a traía.

Ela pediu um café, do mesmo tipo que o dele. Ele não sabia se ela tinha visto sua xícara antes. Para falar a verdade, ele nem se importava com este fato. Queria saber mais dela, lembrar daquele sentimento de sonhos que a faculdade trazia e da esperança que ambos tinha no futuro. Conversaram. Sobre muitas coisas e sobre pequenas coisas: relacionamentos passados, pequenas piadas de faculdade, sobre os professores... Riram um do outro e um com o outro.

Até que houve aquele silêncio constrangedor entre uma piada e outra. Os olhos dos dois se cruzaram novamente, mas havia ali uma certa espécie de um inconsciente contido, algo que sempre desejavam dizer um para o outro. Galeano pigarreou e perguntou sobre Peterson, o seu amigo. Ela falava que estavam casados. Ela perguntou o mesmo sobre ele. Ele disse que também estava casado. Os dois sorriram um sorriso estranho, atípico de canto de boca, quase como se um amargo fosse colocado na boca de cada um.

Ao pagarem a conta, dirigiram-se para a porta juntos. Pararam um de frente para o outro, como se precisassem dizer tantas coisas, tantas palavras que ficaram no passado e nunca foram ditas. Ele pediu o seu telefone, e ela deu. Ela anotou o dele. Galeano foi para casa pensando em tudo aquilo que havia acontecido. Sobre aquela velha estranheza típica em momentos de carência afetiva, da necessidade de precisar de algo fora de seu casamento. Nunca tinha feito isto na vida e não pretendia fazê-lo agora.

Alguns dias se passaram, sem que ele tivesse para ela ligado. Tinha recebido uma proposta de uma clínica particular para trabalhar lá. Havia sido altamente recomendado por seu professor da pós-graduação, que o achava um brilhante diamante. Foi conhecer a estrutura da clínica: uma de dois pavimentos em área nobre da cidade, arborizada e com várias estruturas independentes, interligadas por arcos e túneis de vidro. Achou fascinante tudo aquilo e dirigiu-se para falar com o dono do local.

Sentou na luxuosa sala de espera, enquanto observava que a recepcionista digitava palavras em demasia para quem simplesmente estava fazendo anotações na agenda. Riu para si mesmo e a imaginou em algum bate-papo virtual conversando com algum estranho para que pudessem sair juntos. Ficou curioso para saber se tinha uma câmera ali, para que pudessem um ver o outro. Neste momento, foi chamado.

Qual a sua surpresa ao ver que era Peterson? Ele fez piada da cara de Galeano, como sempre costumava fazer. Peterson tinha usado um dinheiro de herança, como ele dizia, para montar aquela enorme clínica. Não sabia que seu amigo tinha tamanho talento para administrar dinheiro, mas ficou feliz por estar ali. Ao menos, poderia escavar alguma possibilidade profissional.

Conversaram por alguns minutos e Peterson foi lhe mostrar a clínica. Quando estavam na cafeteria, Peterson foi chamado por sua secretária para atender a uma visita da ANS. Pediu para que lhe esperasse. Enquanto bebericava seu café, viu Carol cruzando o corredor. Quando Carol o notou ali, ficou mais branca do que o habitual, mas disfarçou bem. Era uma dama na sociedade, como poucas. Possuía um porte de berço.

Ela sentou-se na sua mesa e conversaram. Ela desejava saber o que ele fazia ali e ele explicou. Ela ficou constrangida, por um minuto. Ele percebeu este embaraço e lhe falou que não sabia se iria aceitar ou não. Ela perguntou porque ele não tinha ligado. Ele quase respondeu... Foi interrompido por Peterson e as visitas. Peterson o apresentou como o mais novo buco-maxilo proemininte e recém-contratado. Galeano sorriu embaraçado e deu de ombros. Falou que precisava resolver outros assuntos. Saiu de lá, deixando Carol com os olhos cheios de privação.

Quando chegou em casa, havia um bilhete de sua esposa: iria viajar durante uma semana com papai e mamãe. Pegou o bilhete, amassou-o e jogou-o no lixo. Estava cansado de tudo, de sua vida ter tomado um caminho que não tolerava. Usando o jargão popular, estava de saco cheio de tudo aquilo. Resolveu beber para esquecer. In vino veritas, pensou. Foi procurar um vinho e viu que era da marca preferida de Carol. Abriu-o e, com uma taça alta de vinho, sorveu-o.

Após a segunda garrafa, estava mais bêbado do que um gambá. Tentou levantar-se da poltrona para ir ao banheiro, sem sucesso. Na terceira tentativa, conseguiu. Após lavar as mãos, escutou a campainha. Pensou na maldita mania do porteiro do seu prédio em sempre não anunciar quando chegava a pizza. Indo em direção a porta, lembrou que a pizza já havia chegado. Abriu a porta ressabiado: esperava que não fosse a vizinha velhinha que morava em cima, a qual reclamava de qualquer barulho.

Teve um assombro: era Carol. Com os olhos marejados, pediu para entrar. Antes que ele começasse a falar, ela despejou todo o seu vocabulário acumulado em anos de mágoas: sua vida não mais lhe servia, detestava a frieza como seu marido a tratava. Nem mais o considerava como tal: mal era tocada por ele há quatro meses. Sentia-se rejeitada, desprezada, humilhada. Chorou. Chorou a tal ponto de soluçar.

Galeano, embriagado, falou que tudo iria passar. Abraçou-a ternamente. Sentia as mãos de Carol de punhos cerrados de raiva, levemente dissolverem-se em uma mão aberta e envolverem suas costas. Ficaram ali poucos segundos, mas foi o suficiente para acender algo oculto que havia entre os dois. Galeano ergueu a cabeça e a olhou, observou que ela fazia o mesmo movimento em distância oposta. Não resistiram.

Entregaram-se a uma luxúria completamente louca e incessante. Amaram-se intensamente por horas a fio, desvendando e desnudando o segredo do corpo um do outro como uma dupla perfeitamente harmonizada junto aos passos dados na pista. Um avançava para que o outro recuasse e vice-versa. Fizeram isto na sala, no corredor e no quarto de hóspedes. A volúpia foi tamanha que as costas de Galeano foram lanhadas várias vezes por aquela tórrida amante.

Galeano lhe serviu vinho, ela sorriu largo ao ver a garrafa: como se advinhasse que ela viria. Como se estivessem em sincronia. Galeano conversou sobre como sempre a tinha desejado, mas que nunca tinha tido a coragem de lhe contar. Carol antecipou-se e perguntou se era sobre as mulheres que eventualmente saíam com Peterson. Ele disse que não, mas era péssimo mentiroso. Carol sorriu e falou que sabia. Só queria saber porquê nunca tinha contado para ela.

Ele disse que não queria que parecesse que aquilo seria o motivo para ela se separar dele, que ela deveria fazer isto porque não mais o queria. Carol ruborizou um pouco sua face, era como se Galeano cobrasse dele agora o assunto de anos atrás. Calou-se. Galeano, percebendo isto, pegou em sua mão e lhe explicou tudo. Explicou que não era isto porque ele nunca falaria nada para que a machucasse e nunca cobraria nada dela. Simplesmente a amaria.

O rubor de Carol aumentou e sua mão ficou fria. Confessou-lhe que sempre queria ter ouvido aquilo dele e que agora não sabia o que iria fazer. Galeano sorriu. Pediu para que ela não pensasse em nada daquilo agora e que depois daquela noite, iriam conversar; mas não ali e nem naquele momento. Aquele era o momento de simplesmente se amarem mais. E como o fizeram. Depois iriam falar do futuro... Agora era só o momento de aproveitar o presente dado por um re-encontro inesperado em uma cafeteria. Ela fez que sim com a cabeça e o beijou, torridamente.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Oração - Reformulada

obs.: Há um conto novo abaixo...

A cada pedra no meu caminho, peço humildade para removê-la sempre com carinho e amor. Pedras são as formas com a qual aprendemos a observar nossas idiossincrasias e nos permite tornamo-nos seres humanos mais conscientes de nossa pequeneza.

A cada pedaço de mim que deixo com o outro, peço que o ilumine nas horas mais escuras de suas vidas, assim como nos momentos mais felizes. Desejo isto não por ser acima de todas as coisas, mas por saber por dor própria como precisamos de luz nos momentos em que a angústia é tamanha que quase chegamos a perder a fé em nós mesmos.

A cada momento, respiro profundamente porque é primeiro e único, para que possa me ensinar a sempre viver plenamente. Mesmo que seja uma tristeza, deveremos vivê-la de maneira plena, a fim de que haja um exorcismo nela para que possamos seguir em frente.

Cada dificuldade será vencida na mesma proporção do meu empenho e de minha capacidade de me abrir para o mundo: deixo que a minha capacidade se junte com a possibilidade de acontecerem juntas. Que eu possa aprender a me empenhar cada dia mais sem que eu perca a gentileza.

A cada momento, a cada segundo, amarei sempre mais que o anterior. Mesmo que tenha raiva e tristeza, desejo que minha paciência possa me mostrar o amor que pode fazer florescer a vida. Mesmo que por vezes possa magoar alguém, desejo que o faça de maneira a mostrar o melhor caminho para aquela pessoa. Não que eu queira magoar, mas por vezes precisamos ser duros e colocar nosso próprios sentimentos de lado para que possamos chegar a algum lugar.

A cada aniversário, agradecerei a tudo no meu ano. Agradecerei a cada dia mais do que pedirei porque desejo mais ser a cada dia aquilo que um dia espero me tornar. Espero que possa ser abençoado com novas oportunidades a cada dia e que, mesmo que não todo dia, eu possa identificar e aproveitar o passeio.

A cada cena, a cada palavra, a cada ato peço que o silêncio me ensine cada nuance nova que pode um texto despertar. Quando fizer o texto mais uma vez, que ele venha da maneira mais sincera e verdadeira, para que possa buscar em minha alma o vazio que a arte cura. Tanto cura quanto mais gera. Que minhas angústias possam ser entendidas através do olhar que eu crio para outra pessoa.

Que eu ame minha mulher cada dia mais, pois mesmo aborrecido e chateado, um sorriso dela me faz perceber a felicidade da vida. Assim como o seu beijo me faz apaixonar cada dia mais por essa pessoa especial. Que a pessoa que esteja ao meu lado possa compreender que a amo, que ela sempre será o meu mundo até o momento em que os dois queiramos que seja desse jeito. Que possamos olhar juntos para uma mesma direção e caminharmos de mãos dadas.

Que minha família e amigos estejam sempre presentes para que compartilhemos sempre tudo o que possamos: maus e bons momentos, porque podemos sempre aprender com todos, desde que aja amor. E que eu busque sempre realçar a cada dia mais estes laços. Que a ternura seja presente, mesmo nos rompimentos porque depois deles, sempre poderemos ter algo novo em nossas vidas desde que nos abramos para isto.

EXCELSIOR!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Camargo e Mannuela

Camargo era um homem solitário. Preferia sempre o conforto de seu pequeno, porém cômodo lar. Voltava do trabalho para casa, raramente preferindo outros programas externos ao seu aconchegante lar. Ele era o lugar ideal para escutar o seu som, ver suas séries prediletas ou degustar seus livros. Tinha predileção e loucura por arte: era psicólogo, porém trabalhava como funcionário público.

Nunca tinha se casado. Preferia os relacionamento de curto prazo em que objetivava apenas o prazer temporário: tanto da companhia, quanto o sexual. Quando percebia que havia por parte de sua companheira momentânea em levar aquele relacionamento a um processo nível de comprometimento, ele a remetia para a pasta das ex-companheiras e seguia o seu ritmo de vida. Não que não sofresse, ele sofria. Mas preferia aquele sofrimento temporário do que a longo prazo sofrer mais quando fosse trocado ou traído. Tinha algo haver com o fato de na mais tenra infância sempre ter tido altas cobranças de sua figura materna; nunca achava-se bom o suficiente. Por isto, preferia a certeza de não ter do que a incerteza de ter algo finito.

Tinha ido, numa noite de sexta-feira, a um restaurante perto de casa. Queria tomar uma taça de vinho e comer alguma comida italiana. Gostava daqueles pequenos restaurantes que lembravam as cantinas italianas de São Paulo e tinha recém-descoberto este pequeno pedaço do paraíso e tinha resolvido ir até lá. Chegando, conseguiu uma mesa. Sentou-se no canto, para não ser notado.

Gostava muito de observar as pessoas, no seu cotidiano. Percebia um casal jantando, eram casados pelas alianças em seus dedos. Comiam e mastigavam como se fosse uma obrigação aquilo tudo, como se tudo o que fizessem juntos não passasse de uma corrente com uma bola de ferro atada a seus calcanhares. Sentiu até um gosto na sua boca de tristeza por aquilo, mas de satisfação por sempre se afastar no momento certo.

Enquanto Camargo levava seu cálice de vinho até a sua boca, parou no meio do caminho. Percebeu que uma mulher de vestido preto, com uma pele branca e cabelos negros como a noite o observava. Viu seus olhos, também negros, penetrarem na sua alma. Assustou-se momentaneamente com aquela visão e prefiriu ignorar e tomar a sua taça de vinho. Percebeu que ela deixou de observá-lo ao ver que lhe causou constrangimento.

Enquanto pedia sua refeição, observava aquele ser inusitado no balcão. Era pouco mais velha do que ele, mas aparentava uma jovialidade interna muito interessante. Exalava uma aura de sedução, porém contida por algum fato de sua infância, talvez? Algo bloqueado pela Lei imposta pela figura paterna a aquela mulher? Via como inclinava a cabeça para baixo para observar a feitura de suas mãos: eram finas, elegantes e usava um esmalte em tom claro para não chamar atenção.

Camargo levantou seu copo em direção a ela enquanto percebia que ela o fitava: não sabia se era o vinho ou se tinha tomado uma atitude ousada. Só uma resposta objetiva por parte dela lhe diria. E disse. Ela pegou sua taça de vinho e caminhou em direção a sua mesa. Ele gentilmente estendeu a mão e pediu para que ela sentasse. Cumprimentaram-se, a princípio formalmente. Conversaram por horas.

Ele descobriu que o nome dela era Mannuela e que, na verdade, o "n" a mais era pelo fato do funcionário do cartório estar bêbado ao tê-la registrado; descobriu que era uma médica muito bem capacitada profissionalmente. Tinha senso de humor, era bonita e inteligente. Como era inteligente... Conversaram sobre arte, sobre política e sobre comportamentos humanos: ela adorava os comportamentos humanos tanto quanto ele.

Os dois sentiram-se meio acuados neste ponto. Ela um pouco mais, pela sua timidez. Ele fingiu não perceber e continuou o assunto, desviando para o casal que tinha observado anteriormente. Ele perguntou se ela se via casada naquela situação. Ela disse que não mais, pois havia se separado do marido. Camargo pediu desculpa pela indiscrição de sua parte - ela, sorriu, abaixando ligeiramente a cabeça e falou para ele que tudo bem. Sua relação com o marido já havia acabado e ela, na verdade, estava saindo para comemorar só.

Camargo sorriu e disse que sempre é bom comemorar em companhia. Após algumas taças de vinho - ele tinha optado pelo vinho de Mannuela, um com tom leve e violáceo, mas nem tão doce - em algum momento que nenhum dos dois lembra, a mão de um tocou levemente a do outro. Camargo olhou para Mannuela e percebeu todos os sinais não-verbais vindo à superfície: sua respiração tinha apertado, pupilas dilatadas, ela inclinava a cabeça levemente para frente pedindo um contato, sudorese leve nas mãos e ruborização na face.

O contato desejado por Mannuela foi dado por Camargo, gentilmente. Tocou na sua mão outra vez, e fez um leve carinho por cima da mesa do restaurante. Ela olhou para aquele gesto tão singelo e sorriu de canto de boca, puxando levemente seus lábios para o canto direito. Camargo viu uma luz vindo de seu rosto: percebeu que eram seus dois brincos da orelha direita sendo refletidos pela luz daquela cantina.

Aproximou-se, então, de Mannuela, a qual cedia ao seu avanço de uma maneira doce. Estavam dançando, mesmo estando sentados, buscando facilitar o avanço de um para a direção do outro. Camargo sentiu cada vez mais forte o perfume de Mannu e desistiu de tudo. Apenas fechou seus olhos e inclinou sua cabeça. A única coisa que escutava era a batida do seu coração misturada com a batida do dela. Beijaram-se suavemente.

Após o primeiro contato de seus lábios, afastaram-se a uma curtíssima distância, o suficiente para os dois sorrirem um para o outro. O beijo tinha encaixado perfeitamente, parecia que suas bocas foram desenhadas uma para satisfazer o prazer da outra. E durante toda aquela noite, foi tudo o que nossos dois amantes se empenharam em fazer. Amaram-se de uma maneira tão fatigante que ficaram com dores por aquela semana.

Passaram a se encontrar toda a semana, nos finais de semana. Quando Mannu podia, claro... Ela estava sempre trabalhando demais como plantonista. Camargo esperava, sempre paciente, por mais um encontro com aquela mulher que o fascinava cada dia mais. Trocaram várias confidências, até mesmo coisas sobre as quais ele nunca tinha dito a nenhuma outra: suas experiências anteriores, seus medos... Até mesmo o seu TOC de colocar o volume das coisas sempre em múltiplo de três, tendendo a ser perfeito quando fosse múltiplo de nove.

Naquela sexta-feira chuvosa, Camargo apenas esperava. Sentia-se muito só ao observar a chuva que batia no vidro de sua janela. Olhou para a casam sentindo-se vazio e confuso. Pegou inúmeras vezes no telefone com a intenção de ligar para aquela pessoa que mexia verdadeiramente com ele. Não conseguia. Apertava e desligava. Não queria demonstrar que estava apaixonado por ela. Ele estava? Nem mais conseguia se enganar... Tinha passado daquele ponto em que dispensava as mulheres e havia se comprometido.

Largou o telefone, sentou-se na poltrona da sala e batuqueou com seus dedos sobre a mesa de madeira. Começou do seu dedo mínimo até o dedão e o fazia de maneira repetida. Refeltia o quanto tinha se envolvido com ela a ponto de não mais conseguir dispensá-la. Já era tarde demais para se ter danos mínimos, mas seria tarde demais para se evitar danos maiores, que poderiam abalar-lhe mais? Não, não era.

Pegou o telefone e discou para ela. Estava decidido a fazer aquilo, não aguentaria mais passar mais uma semana sem vê-la. Decidiu acabar com tudo ali. Ela atendeu com um "oi" disperso:

- "Liguei em má hora?" - perguntou ele, gentilmente

- "Não, não... Eu só..." - ficou reticente e ele resolveu não intervir... Resolveu dar a ela a oportunidade de lhe falar o que queria - "Eu posso ser sincera com você, meu lindo?"

- "Pode, claro, como habitualmente somos um com o outro." - Tremeu por dentro... Tinham uma sincronia fantasticamente de sentimentos e pensou que ela poderia estar sentindo o mesmo. Prendeu a respiração. Ficou angustiado... Mas lembrou que poderia ser melhor daquele jeito, terminar antes de que se ferissem mais.

- "Eu quero confessar que... Estou gostando de você. Mesmo. Não pensei que fosse gostar de alguma pessoa em tão pouco tempo, mas você se tornou muito especial em minha vida. Não queria me envolver neste momento, tudo confuso e indefinido para mim. Mas, posso lhe dizer qual a única certeza que tenho?"

- "Pode, Mannu, pode..." - Estava chocado com tanta sinceridade. Aquela mulher o surpreendia a cada pequeno movimento que tomava em relação a ele. Deixou-a falar mais, precisava ouvir mais dauqela voz, sentir-se acarinhado por aquelas mãos tão cuidadosas e firmes que tinha com seus pacientes.

- "Você é a única constância na minha vida hoje. Quero que continue assim. Nunca podemos prever o futuro, meu lindo. Sei que posso parecer confusa agora, mas sou extremamente racional quando tomo uma atitude, ainda mais na área de sentimento. Eu espero que você possa me entender e que possa me esperar." -Camargo perdeu o fôlego por um momento que pareceu uma eterniadade - "Está aí, meu lindo?"

-"Eu confesso que não esperava ouvir isto... Ainda mais deste jeito. Eu quero ser sincero com você também, posso?"

-"Claro." - Sentiu que agora era a voz dela que ficou trêmula e insegura, esperando o que viria dele.

-"Eu não queria ninguém que me comprometesse, que fizesse o que você fez comigo. Você me faz sentir um adolescente entusiasmado com a vida. Você me tocou de uma maneira tão sincera e bonita que dói não ter você perto de mim. A sua falta me faz até mal, mas eu posso dizer com todo certeza de que eu também gosto de você."

-"Eu não queria que fosse assim, que lhe causasse dor. Não queria lhe magoar..." - Foi interrompida por ele.

-"Só me dói porque gosto demais de você. Como nas peças de teatro, não sabemos como os personagens principais se apaixonam tão rápido, mas temos que continuar nesta barca. Sei que tem seus compromissos profissionais e sei que ama o que faz. Eu só tenho que ser mais paciente e esperar, certo?" - Disse isto, deixando escapar uma lágrima de emoção.

-"Meu lindo, você está chorando? Não queria lhe fazer mal..."

-"Choro de felicidade pelo que nós temos ser tão bonito e tão bom para nós. Gosto de você de verdade, viu minha paixão?"

Houve um silêncio, uma pausa para compreensão por parte dos dois sobre tudo aquilo que estava acontecendo. Mannu quebrou o silêncio:

-"Olha... Eu quero dizer que hoje não vamos nos encontrar, mas... Posso ir para a sua casa amanhã, pedirmos uma pizza e ficarmos só nós dois?"

-"Com uma condição."

-"Qual?"

-"Se pudermos tomar um vinho e termos sorvete de sobremesa."

-"Com calda?"

-"Não iria querer menos para quem me quer bem. E marshmallow."

-"Vou ansiar por cada minuto, viu meu lindo? Eu preciso ir internar um paciente... Mas eu te adoro muito. Você é muito importante para mim. Um beijo."

Despediu-se dela. Tinha tido a sua primeira certeza: ela realmente queria passar um bom tempo ao seu lado. Resolveu sentar-se no sofá atônito sobre tudo que havia acontecido. Iria aprender a lidar com aquela falta temporária por um longo relacionamento. Abriu uma garrafa de vinho, para lhe fazer companhia naquela noite com um bom livro. Tinha tido agora uma segunda certeza inconsciente sobre ela. Sorriu. Era o vinho preferido de sua amada.

terça-feira, 27 de abril de 2010

A uma sem nome II

Adentramos o nosso pequeno paraíso de uma eternidade de promessas, um quarto só nosso. Pouca luz raja pelas cortinas e iluminam o lençol de cetim branco. Após algumas abraços de saudade, toques de carícia, vem a paixão de nossos beijos. Interrompemos, por um minuto, tudo o que acontece enquanto eu busco a sua música predileta para que ouçamos juntos.

Quando olho, vejo que está coberta com o lençol, olhando para mim de um jeito maroto. Parece-me a moleca da infância que furta a bola de futebol para que o menino de quem gosta venha para lhe dar atenção. Você vira de costas, de bruços, quase como se oferecendo para mim. Percebo e sorrio para mim mesmo a ver aquela pintura maravilhosa que você fez. Enquanto a música corta o ar, aumentando a aura do nosso encontro, chego perto e descubro pouco a pouco o meu tesouro.

Ao arrastar o cetim pela tua pele, percebo que ela esta desnuda. Não toda ela. Está usando aquela pequena peça negra que realça na tua pela alva, cobrindo a maior parte do meu desejo daquela noite. Você olha para trás e me sorri, convidativa. E eu, como um servo do teu prazer, aquiesço em me prestar a sua satisfação. Quero naquele momento acordar o dragão que existe dentro de você e, para tanto, tenho que seguir o caminho dele.

Vou beijando e tocando desde o início do seu cóccix, subindo bem devagar por sua pele. Ao fazer isto, vou desnudando os pêlos do teu corpo com o meu beijo, ouriçando-os como o porco-espinho o faz para se defender: mas ali o teu único desejo é estar totalmente indefesa e convidativa a toda e qualquer investida do teu amorzinho. Após um exaustivo e gradificante caminho, chego ao teu pescoço. Sinto o teu cheiro permear o ar, trazendo uma atmosfera de hedonismo. Pego o óleo e exploro cada parte do que se oferece para mim, cada pequena curva, cada pequena amostra de montes, cada pequeno orifíio de um modo apaixonante e gentil.

Escuto um arfar quando tiro a minha boca do seu corpo. Quando então beijo teu pescoço, ouço outro mais intenso seguido de um salivar de sua boca. Ao tocar teu pescoço com os dedos, invisto meus esforços em tua orelha direita, percorrendo o lóbulo e a parte interna, passando lentamente meus dentes e língua como se quisesse usurpar aquele pequeno pedaço para mim. Falo, bem baixo e quente, tudo o que desejaria ouvir naquela hora de prazer mais aflorado. Ruboriza-te a face e teus olhos brilham com o que foi escutado pelos teus canais auditivos.

Viro o seu corpo e retiro aquela peça que cobre tudo o que desejamos nos dar. Guardarei como um troféu dos cruzados, após retornarem uma longa batalha. Será meu para todas as noites frias e cinzas que passarei sem você. Mas logo esqueço-me disto e passo-me a dedicar toda a minha atenção ao seu pequeno cálice. Encho-o de vinho, misturando o teu gosto com o da uva e deleito-me com este prazer. Tento preencher o que vaza, tentando não desperdiçar ao menos uma gota... E tenho sucesso.

Passo maravilhosos longos minutos, sentindo o teu corpo se retesar e se comprimir, se esticar e pedir por mais. Sinto seu coração palpitar cada vez mais rápido de onde estou e sinto que suas coxas se retraíram demais. Sinto que algo está próximo. Paro. Levanto minha cabeça e vejo teu rosto transtornado por toda intensidade da volúpia provocada pelas minhas carícias. Teus olhos, vidrados e enlouqecidos, não conseguem se conter e deixam sua boca implorar por mais.

Sempre sendo o gênio de teus desejos, debruço o meu corpo sobre o teu e beijo de uma maneira ardente. Serpenteio minha língua na tua boca, mordendo seus lábios e, nestes beijo melado, suado e ardente, preencho o teu vazio tão desejoso de algo que o completasse. Neste momento, você arfa tão alto de prazer que pede para que eu nunca mais pare, para que eu nunca mais saia dela, para que eu nunca mais a deixe ir embora. Escuto tudo aquilo e aumento a intensidade de meus movimentos.

Continuamos nesta nossa flexão enquanto você crava suas unhas nas minhas costas, como se quisesse me colocar cada vez mais dentro de você, buscando fundir dois seres em um só. Sinto-me muito gratificado com isto e continuo até que escuto aumentar seus gemidos até que... Até que se rompe um ar com um único e imenso som de satisfação. Seu corpo todo se comprime por um minuto e se larga no nosso leito. Tua respiração tão acelerada, teus choques tão aumentados... E foi só a primeira parte de uma longa história do que será a nossa noite.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Stênio e Anastácia

Chovia naquela segunda-feira chuvosa. Uma figura taciturna estava sentada no ponto de ônibus, aproximadamente às onze horas da manhã. Deixava-se molhar pela chuva, como se a mesma pudesse limpar todas as dores de sua alma torturada e cansada pelo contínuo fracasso de sua pífia existência. Sentia-se apagado ao ver as pessoas caminhando, rindo, indo em direção a um trabalho... Um trabalho que Stênio não mais possuía.


Era tido como um brilhante aluno na faculdade de administração. Exímio em contas e em resoluções de problemas, deixava seus mentores orgulhosos em relação a como podia ter idéias incríveis e originais em questões de momentos. Invejava seus colegas pela sua capacidade; as alunas novatas ficavam entusiasmadas de como um veterano podia ser tão simpático, solícito e inteligente. Ele traçava todas elas.

Até que se apaixonou por Natasha. Possuía os olhos verdes, loira, branca como a neve - como ele gostava - e inteligente. Casaram-se logo depois que ele se formou e enquanto ele arrumava um estágio na mesma empresa em que iniciara carreira. Eram o casal perfeito: partiam para trabalhar, almoçavam, iam para a faculdade (ele para a pós-graduação como bolsista e ela para se formar) e voltavam para a casa juntos. Durou cinco anos este mar de rosas e felicidades.

O cinza do cotidiano começou a amargar a relação. Após ela ter tido a primeira filha, tornou-se cada vez mais autoria no lar, influindo na baixa auto-estima que Stênio fazia questão de esconder para todos. Ninguém desconfiava que era tão fácil derrubá-lo porque o mimetismo social que ele fazia era perfeito: falava de maneira fluída, desinibida e carismática - um líder nator.

Começou a cometer pequenos erros no trabalho que o frustavam mais ainda. Sua esposa que antes o apoiava, começou a tomar decisões contra o setor de Stênio: havia crescido na empresa por ter caído nas graças de um diretor. Evoluiu muito mais rápido e de maneira muito menos competente que seu marido, mas nem sempre em empresas privadas os bons sobrevivem sempre. Após a volta da segunda licença-maternidade, chutou Stênio tão longe que o coitado não conseguiu se recuperar.

Perdeu o emprego, vivia do seguro-desemprego e do dinheiro de sua demissão sem justa causa. Mudou-se para um apartamento de dois quartos que havia decorado para as duas filhas. Sua mulher ingressou com um processo junto ao judiciário para afastá-lo, dado o caráter violento do pai. Ludibriou, subornou, mentiu: conseguiu o que queria. Tinha, ali, naquele fatídico dia, quebrado a espinha dorsal do último resto de senso de estima de Stênio.

Mudou-se para um pequeno apartamento, um cubículo de quarto e sala. Chorava noites a fio, entregue a uma depressão tão profunda que nada o conseguia tirar da cama. Quando de lá saía, era para comprar bebida. Foi decaindo do whisky doze anos importado para um de oito; depois passou para um nacional, a vodka... Ia se depreciando cada vez mais até que estava sentado no ponto de ônibus, nesta segunda-feira chuvosa, com uma garrafa de vodka de plástico, tão barata que congelava ao se colocar no refrigerador.

A garrafa por um instante rolou da sua mão e foi em direção a rua. Ele apenas observava, incrédulo, que até seu último consolo neste vida tinha rolado de suas mãos entorpecidas pelo álcool de uma dor incurável. Foi dando passos cambaleantes até seu prédio, sendo eterno subalterno de seu vazio existencial. Resolveu, antes de abdicar em definitivo de uma existência inútil e sem sentido, se despedir da única pessoa que ainda o ancorava neste mundo desprezível.

Uma prostituta chamada Anastácia - diga-se de passagem, adorava mulheres com nomes russos e de pele branca - conversava com Stênio. Não que fossem imensos e grandes amigos, mas ao menos tinham dividido um pedaço de pizza fria e um refrigerante quente vez por outra. Stênio tinha curiosidade para saber como ela conseguia fazer o que fazia. Ela deu de ombros e falou: - "Na necessidade e falta de capacidade pra coisa melhor..." Isto o constrangeou imensamente. Nunca mais voltaram a este assunto.

Ele bateu à sua porta.Ela tinha acabado de acordar e atendera, com aquelas típica remelas e olhos inchados, mas já com um cigarro na mão. Ele, ainda ensopado pela chuva, apenas a abraçou. Verteu uma lágrima de seus olhos, a única sentida. Mesmo no ponto de ônibus, onde elas abundavam, passavam despercebidas, só quando lhe tocavam a boca sentia o seu gosto de sal. Ali não. Ele percebeu que uma única lágrima escorreu, a sua última.

Virou-se e murmurou algo, um grunhido, algo que nem ele nem Anastácia compreenderam. Voltou ao seu apartamento e pegou as fotos de suas filhas. Lembrou que ainda pagava um seguro de vida associado a sua conta que estava no limite do cheque especial e do vermelho de empréstimos. Empurrou as contas atrasadas da mesinha da sala e apoiou-se nela. Lembrou do seu tempo de infância quando fora Lobinho e pegou uma corda que guardava de recordação onde praticava seus nós. Fez o nó mais perfeito, digno de suas medalhas da infância. Apoiou a corda na viga e prendeu-a bem. Pegou as fotos de suas filhas e beijou. Segurava-a na mão.

Quando ia colocar a cabeça no pescoço, bateram na sua porta. Resolveu ignorar, provavelmente mais um cobrador do cartão ou, quem sabe, o senhorio que desejava receber os meses de aluguel atrasado. Acertou o nó para o seu último e derradeiro suspiro, mas a intervenção do som cortou-lhe o que estava fazendo. Resolveu acabar de vez com aquela interrupção para que pudesse dar cabo do que queria fazer.

Abrindo a porta era Anastácia. Ela olhou em seus olhos e por trás de seus ombros e reparou no que Stênio estava prestes a fazer. Ele percebeu e sentiu-se acuado, como a criança que é pega no ato ao tentar se apropriar indebitamente do seu conteúdo antes que sua mãe permita. Enconstou no batente da porta e deslizou por ela lentamente, debulhando-se em lágrimas. Soluçava tanto que por vezes lhe faltava fôlego.

Anastácia o ajudou a levantar e levou até o banheiro. Lavou o seu rosto com suavidade. Enxugou-o. Depois de abraçá-lo confortavelmente, levou-o até seu apartamento e fez-lhe café. Tomou gole pequeno. Stênio estranhava tamanho carinho por parte de um ser humano: sentia-se o cachorro do mendigo, expulso de cada relação afetiva e profissional com a exatidão de um franco-atirador e a potência de seu rifle de caça. Foi quando Anastácia tocou sua mão e lhe explicou.

Uma noite, os dois mais bêbados do que gambá (a expressão usada por ela), ela se insinuou sexualmente para ele, mas com uma libido real e juvenil. Ele a recusara, dizendo que estava bêbado demais para lembrar do que iria acontecer ali e velou por seu sono aquela noite. Voltou ao seu apartamento e dormiu sozinho na sua cama. Ele realmente não se lembrou de nada daquela noite.

Stênio sentiu, naquela hora, quase que um estalo de auto-estima criptando em uma fogueira de acampamento já velha e cheia de toras queimadas e carbonizadas. Neste momento, teve mais um gesto de gentileza daquela mulher tão sofrida. Levou-o até o banheiro e fez-lhe a barba. Tirou todos aqueles pêlos extras por fazer que ficaram não se sabe quantos meses naquela face.

Naquele momento, Stênio fez-lhe uma promessa: iria mudar. Não por ele, que considerava sem solução para aquela vida, apenas aguardava a próxima. Iria mudar porque aquela mulher tão desprezada e maldita pela sociedade, mas a quem várias mulheres deviam a suas vidas de casadas pela sua habilidade sexual memorável, para que ela pudesse ter algo digno em sua vida. Algo do que ela pudesse se orgulhar. Anastácia chorou com tal demonstração de afeto e Stênio começou a procurar emprego para que pudesse dar realidade a sua palavra.

sábado, 24 de abril de 2010

Teobaldo e Guilhermina

Teobaldo tinha se apaixonado por Guilhermina. Conviviam há seis meses, porém parecia que se conheciam já há anos. Ambos sabiam as predileções de um pelo outro e também do outro em relação ao mundo. Divertiam-se com pequenos impecilhos do cotidiano para que se vissem, mas maravilhavam-se cada vez que se encontravam. Corria, além de paixão, um sentimento de bem querer enorme um pelo outro, beirando quase o amor. Tinham medo de pronunciar esta palavra. Preferiam conjugar o verbo adorar, acompanhado de um pronome de tratamento do caso oblíquo.


Os dois tinham se conhecido em uma situação difícil de suas vidas: saíram de longos relacionamentos afetivos que não tinham dado certo. Teobaldo saiu de um namoro de seis anos porque sua ex-namorada o descartava sexualmente, muito embora fosse ela dona de um desejo ardoroso por sexo. Já Guilhermina tinha oito anos de namoro quando percebeu que aquele homem nunca poderia lhe dar o que ela queria: filhos; ele não a desejava tanto para ter filhos com ela - frase veemente repetida por ele aos quatro cantos. Seu desejo de ser mãe gritou e fez com que ela se libertasse daquela relação.

Antes de montarem suas casas, tomaram este baque. Conheceram-se numa destas salas de bate papo virtuais, numa noite de uma quinta-feira de carnaval. Ele lembra vivamente do apelido que ela usava: Fada Verde. Começou ele com seu típico: - "Oi. Tudo bom? Procurando companhia?" - Até que conversaram sobre tudo. Música, teatro, palavras difíceis... Apostavam um com o outro sobre quem saberia mais. Tudo isto recheado com o mais alto requinte e um leve toque de querer conquistar por ambas as partes. Com certa intimidade, perguntou o porquê do apelido, se era em relação ao Absinto. Ela sorriu e disse que gostava de fadas e da cor verde. Aquilo era mera coincidência.

Saíram a primeira vez, tiveram sua primeira relação. Apaixonaram-se, sem admitir um para o outro, como o esgrimista fitando o adversário para saber qual será o seu próximo passo. Estavam magoados demais com as próprias decepções e por medo de se ferirem de novo, apenas adiavam o inevitável. O mais interessante é que ao postergá-lo, apenas aumentavam o desejo que um nutria pelo outro. Foi crescendo de uma maneira incontrolável quase como o pão com muito fermento; mas a receita até o momento estava dando muito certo... Certo até demais. Parecia que ali havia um sincronia, quase que uma bela e fina sintonia cósmica.

Em um dia típico da tpm (inchaço, sangramento em excesso, mau humor crônico, entre outras características extremamente perigosas para a vida do companheiro), Guilhermina estava no seu momento concha. Recolhia-se do mundo em sua pseudo-casca de proteção, como uma lagarta prestes a virar borboleta. Tinha essa mania desde a infância, quando tinha furtado frutas da árvore do vizinho e o pai a tinha colocado de castigo por horas. Ela passava quase que se a embrulhar no seu lençolzinho protetor e ficar quieta. Murmurava apenas palavras monossilábicas.

Isto deixava Teobaldo de orelha em pé: o fato dela não dividir isto com ele o transtornava. Amava-a demais para vê-la sofrer daquele jeito, por vezes por nada. Muito do que acontecia poderia ser contornado com o anticoncepcional e o seu bom humor sagaz e versátil, mas isto não acontecia. Toda gracinha que ele falava, Guilhermina sentia como se ele invadisse a sua privacidade, mais íntima mesmo do que o fato de se desnudar para ele. Ela o retaliava sucessivamente.

Desta feita havia sido demais: quando ele fez uma piada da qual ela riria normalmente, foi como se abrisse as portas de Hades e soltasse o furioso Cérbero. Fogo saía pelas suas ventas e fora arranhado pelas garras de suas palavras. Acuado com um herbívoro por seu predador natural e mais faminto, Teobaldo deu de ombros e foi embora. Não sem antes ouvir uma frase fatal: -"Maldita carência afetiva que me fez aproximar de você. Não sei se gosto de você tanto assim!"

Aquiesceu com o que foi dito e saiu de casa. Uma lágrima rolou, junto com uma dor tão atroz no seu peito que parecia que iria infartar. Seu ventrículo esquerdo, o lugar que tinha guardado tão especialmente para aquela mulher fascinante fora atacado pesadamente. Suspirava e chorava. Buscou no álcool, em um bar, a libertação para toda a sua dor. Já completamente embriagado, no auge de sua carência afetiva e em um completo abismo de solidão, sofreu a investida de uma mulher.

Carente, triste, alcoolizado... Teobaldo se sentiu uma presa fácil. Cedia a certos avanços da mulher, mas ouviu ao longe a música de amor que ela tantas vezes tinha para ele cantado e com ele dançado. Levantou-se e pagou a conta. Foi até a sua casa determinado a resolver aquela situação de uma vez por todas. Iria colocar um ponto final naquela história e nada o iria impedir, nem mesmo os deuses mais poderosos, nem mesmo a lei mais dura, nem mesmo os problemas de sua infância que se somatizam por vezes. Nada o abateria.

Chegando em casa, encontrou Guilhermina no canto da cama, com o rosto amoado. Tinha derramado um rio de lágrimas, podendo encher o oceano de dor que tinha gerado as suas palavras para ela mesma e para Teobaldo. Teobaldo percebeu que era uma cogitação válida a carência, que realmente poderiam eles estar juntos apenas para que um cuidasse do outro nas noites frias e tristes. Poderia ser apenas uma não-aceitação pelo fato de que não queriam ficar sós, que era preferível alguma companhia do que nenhuma.

Sentou-se do lado de Guilhermina na cama e olhou bem profunda e mansamente e disse-lhe: -"Amo você. Vou aprender a cada dia lhe respeitar, até mesmo este momento seu de ficar quieta no canto." -disse-lhe sorrindo, alisando uma face maltratada por insegurança em relação a um possível rompimento de algo tão tenro para ela - "Pode estar sendo tudo rápido demais, pode estar parecendo tudo bom demais. Aos poucos, estamos nos entrosando, nos conhecendo a cada dia. Não quero perder isto. Todos temos carências afetivas, todos temos medos. Não podemos é deixar o nosso medo de nos frustar vir a dirimir a nossa relação, como água escorrendo pelo ralo do box. Somos o que somos e nos amamos. Se fosse mera carência..."

Ela escutou toda a história do bar e tantas outras oportunidades de sexo fácil que ele poderia ter tido. Sentia raiva pela sua sinceridade ser tão grande, mas aos poucos a raiva deu lugar a um entendimento, quase que a uma epifania em seu córtex: percebeu porque ele quis dizer aquilo. Ela sabia que ele era realmente um fauno, apreciava o sexo, mas sabia também que só gostava de fazer aquilo acompanhado da pessoa que amava, mesmo ela tendo que trabalhar todos os dias até mais tarde, continuava ele fiel a ela. Ele dizia que ela era o seu mundo. Percebeu que ele colocava suas necessidades de lado (não só as sexuais) em prol da relação. Sentiu-se diminuída e quase voltou a chorar.

Teobaldo deu-lhe um beijo na testa, para acalmá-la. Deu outro em seus lábios. Olharam-se, fitando-se, como que um querendo fundir seu corpo e mente ao outro. Havia pedidos de desculpa, carinhos, amor, frustrações, tudo... Tudo o que compõe uma bela relação entre duas pessoas que se amam. Abraçaram-se profundamente e de uma maneira sublime.Teobaldo deitou-se na cama com Guilhermina, não sem antes terem se banhado: tinham o hábito de banhar-se um pro outro, por vezes com o outro e perfurmar-se antes de dormirem. Ele apoiou a cabeça dela em seu ombro, beijou-lhe a face e ela sorriu, quase que ronronando e se aconchegando em seu homem. Fez um carinho em seu peito, beijou-o ali também e adormeceu em seus braços.

Tinha ali adquirido a certeza de duas coisas. A primeira a de que ele a amava, chamou-o baixinho de meu amor para que ele quase não escutasse. Ele deu-lhe o beijo mais carinhoso do universo em sua testa e chamou-a também de meu amor. A segunda conclusão foi a de que eles nunca mais discutiram na sua tpm, nem sequer levantaria hipóteses sobre o relacionamento dos dois, por medo de que suas inferências não-muito lógicas atrapalhassem aquele belo casal, formado repentinamente. Porém, com um futuro tão promissor, tão propício a boas gestações de amor e de filhos que o tempo mostrou-se ser exatamente aquilo que era preciso: curto para se amarem de maneira tão tremenda e longo para que o cultivassem hoje e sempre.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pleore e a Lógica

Pleore era uma fiugra um tanto quanto comum. Era um jovem que estava chegando a vida adulta e deveria escolher uma profissão. Nada muito diferente das pessoas comuns; porém Pleore não era lá uma pessoa. Quando menciono figura, na verdade, Pleore é filho de duas figuas de linguagem: filho do Pleonasmo e da Repetição. Pleore foi o nome dado pela matriz de patentes genéricas de nomes de figuras de linguagem. É uma nomenclatura temporária, mas melhor do que a matriz anterior que atribuía somente números a eles. Imaginem o pai brigando com o filho e o chamando de 1243798624?


Pleore estava triste porque tinha que fazer esta resolução, não porque evitava um caminho profissional. Adorava isto, sempre gostou de aprender a língua. Ele estava triste porque seu pai estava sofrendo de Alzheimer e sua mãe não poderia continuar a repetir as palavras porque estava sofrendo de Parkinson. Ele teria que escolher uma das duas profissões deles, deixando a outra em aberto para que pudesse ser escolhida por outra figura de uma família maior.

Transtornado com aquilo que o consumia por dentro, Pleore resolveu recorrer a algo fora do seu cotidiano: foi procurar a Lógica. A Lógica era tida para aconselhamentos extremos porque pouco importava para aquele ser racional o que deveria ser escolhido: contato que a proposição fosse verdadeira para os seus clientes, não importando se P ou Q eram bons ou não, aquilo era tido como uma Tautologia. E tudo o que importava para ela era ser tautologicamente correto.

Pleore tirou o terno do armário que sua mãe havia comprado: todo preto. Não só o terno e a calça, mas também a camisa, a gravata, as abotoaduras, o lenço, os sapatos, as meias e a cueca. Vestiu-se assim porque sentia uma necessidade extrema de parecer seguro mediante a tão temida Lógica. Poucas figuras de linguagem recorreram a ela justamente por não haver uma brecha interpretativa diferente. Mas esta nossa figura estava determinada.

Dirigiu-se até o escritório da Lógica. Lógico que era um enorme escritório, com logicamente uma sala para espera. Algumas Equações de Segundo Grau estavam presentes: X queria se divorciar de Y porque estava desconfiado de que o 0 da equação estava significando bem mais do que nada para a sua esposa; A Fórmula de Báscara estava cansada de ter duas opiniões diferentes e queria somente uma, o que estava gerando uma imensa confusão entre os termos. Ah... E a pobre Equação de primeiro grau estava procurando uma companheira, mas deu de ombros ao ver a confusão da de Segundo Grau e foi-se embora.

A secretária da Lógica pediu que Pleore entra-se e fosse objetivo: sua consulta não poderia passar de doze minutos e trinta e cinco segundos. Pleore fez que sim com a cabeça, mas logicamente ele não tinha um relógio. Achou irrelevante confirmar isto, mesmo porque a confusão de sinais do saguão de espera tinha lhe dado uma imensa dor de cabeça e resolveu apenas fugir dali para sua decisão mais difícil.

Quando entrou, se surpreendeu com a Lógica: imaginava uma senhora idosa, típica avó como se fosse a Eva Tudor. Não era nada disso... Era jovem e elegante, como uma Betty Boop, com um vestido preto e uma forma para lá de sedutora. Assustou-se. A Lógica pediu para que ele senta-se, enquanto ela resolvia certas coisas para lhe dar a única e exclusiva atenção pelo tempo proposto. Logicamente, seria descontado o atraso dela.

Enquanto a observava escrever, visualizou que ela não tinha letra de médica, daqueles garranchos apressados. Como era afeto à área de humanas, gostava de analisar as coisas com implicações na personalidade. Via que o "m" gerava quase que um formato de coração, mas desprezou aquela pequena curiosidade das demais letras. A Lógica tinha acabado e guardado tudo na pasta, pedindo que lhe explicasse o seu caso. Agora sim o tempo estava correndo.

Percebeu que o problema de Pleore era simplesmente uma proposição de ou p ou q, em que um dos valores deveria ser verdadeiro e o outro falso para que ele pudesse ter como verdadeira aquela proposição. Pleore discorreu sobre tudo o que gostava, mas a Lógica apenas o fitava com seu olhos. Parou de falar. Houve um pequeno silêncio. Estava nervoso com aquela situação e também tinha um prazo para informar a Gramática o que ele iria escolher.

A Lógica fez algumas proposições de Se, então; e; ou; se, somente se... Mostrou problemas enormes, que mal cabiam numa folha de papel A4. Pleore não sabia, mas a Lógica nunca tinha buscado uma resolução tão completa para um problema tão simples. Mesmo assim, tudo aquilo tinha dado um nó na cabeça de Pleore, mas ele prosseguia concordando quase que automaticamente balançando positivamente o seu crânio já confuso. Não entendia nada. A Lógica fez uma cara de que havia acabado de explicar, contudo tudo aquilo já não fazia o menor sentido.

Resolveu que iria fazer do seu jeito. Olhou bem profundamente nos olhos dela, como se quisesse estabelecer uma ponte, uma forma de conexão... Uma sincronia entre eles. Pegou na mão dela e perguntou: - "O que você faria se fosse eu?". Percebeu que depois de perguntar, a Lógica tinha ruborizado. Sua mão estava mais quente e com um pouco mais de sudorese, muito embora o ar condicionado daquela sala fosse perfeito.

Viu que ela engoliu a seco. Perguntou se estava tudo bem e, viu de sua órbita ocular direita escorrer uma pequena lágrima. Deu seu lenço para ela que o usou e o colocou em cima da mesa. Ela disse que, em todos os anos, até mesmo quando conversava com Platão e outros teóricos da matemática, todos só queriam a usá-la para atingir seus objetivos masculinos, doravante ninguém nunca tivesse perguntado qual a opinião dela, incluindo-a na conclusão de maneira sentimental.

Agora Pleore estava realmente confuso. Quantas camadas poderiam haver debaixo daquela entidade aparentemente fria e calculista? Lembrou do "m": tudo fazia sentido agora. Usava uma figura feminina sedutora porque queria mandar o sinal de que estava disponível para uma relação; a letra pequena e tímida revelavam um ser que desejava ser preciso no pouco que fazia por medo de ser afastado por outra pessoa. Concluiu que a Lógica usava deste método para não ferir os seus próprios sentimentos.

Convidou-a para almoçar. A Lógica relutou, falando que havia cliente o dia inteiro. Em todos estes milênios, nunca havia cancelado ao menos um compromisso. Pleore insistiu delicadamente, pousando sua mão delicadamente sobre a dela. Viu que outra lágrima brotava do seu rosto e decidiu ele mesmo passar o lenço sobre ela: -"Vai ficar tudo bem", dizia ele. Ela pegou o lenço de sua mão, gentilmente, e tocou seus dedos. Aceitou o convite.

Passaram diversas horas agradáveis juntas e divertidas. Falaram de suas vidas e Pleore adorava ouvir suas histórias. Achava-as fascinantes, analisava pontos em comuns entre elas e notava certos comportamentos repetidos. Quando se deu conta disso, soltou um sorriso largo, fazendo a Lógica parar. Pegou em sua mão e decidiu que queria seguir a figura de sua mãe, repetindo as coisas de maneiras diferentes. Agradeceu-a profundamente.

Naquele momento tinha acontecido outra pausa constrangedora. Pareceu que o Tempo parou, o ponteiro do segundo do relógio dela tinha congelado. Para o Infinito, somente havia aquela pequena mesa, naquela pequena cantina italiana. Seus rostos foram se aproximando, bailando no ar de maneira nervosa e apaixonada. Seus lábios trocaram, havendo uma profusão de proposições e repetições. Proposições amorosamente verdadeiras e repetições romântica de vários atos, muitas vezes, buscando apenas o prazer.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Prudente e Anete

Prudente era uma figura bem peculiar. Ele sempre podia resolver o problema de todas as pessoas. Uma das pessoas mais gentis e solícitas da face da Terra, ele sempre tinha mais um minuto do seu dia para doar a um amigo que estivesse passando por algum tipo de problema ou até mesmo um desconhecido que precisasse lhe falar sobre algo ou lhe pedir um trocado para poder voltar para a cidade do interior de onde tinha saído a convite de um primo que não se encontrava em casa.


Prudente não se importava... Na verdade, ele se importava em estar disponível para os outros. Tinha o trabalho ideal: funcionário de uma empresa em que mal fazia nada, podia sempre estar disponível nos cafés para poder ajudar qualquer um. Embora fosse desse jeito, poucas pessoas lhe faziam caso. Na verdade, nenhuma pessoa o considerava; começavam a conversa perguntando como ele estava. Ele respondia um: -"Bem, e você?" - e a pessoa desandava a falar sobre seus problemas pessoais. Prudente ajudava, um a um.

Foi quando conheceu Anete. Ela trabalhava em um outro setor da sua empresa, quando se conheceram em uma pausa para o café. Ele achou engraçado o jeito que ela molhava a rosquinha que ele adorava em sua infância no café e a deglutia. Achou interessante e observou que os olhos dela eram fundos, como se vivesse sempre cansada e stressada. Ao continuar seu interesse, percebeu que ela derrubou o copo de café no chão. Ele, do seu jeito já lugar comum, foi até lá e enxugou o chão. Anete sorriu, com o gesto de delicadeza.

E assim começaram a conversar. Poucas coisas eram ditas nos primeiros dias, mas sempre um tentava chegar naquele momento perto do outro. Algo tímido, incialmente, por parte de ambos, mas que a cortesia de Prudente e a vivacidade de Anete foram cedendo pouco a pouco. As barreiras sociais iam caindo delicadamente e logo passaram a conversar sobre vários tipos de assunto. Foi quando Anete lhe contou seu problema.

Ela era infeliz no seu casamento. Seu marido a tratava como um objeto de decoração na sala, como se fosse uma mesa de centro na qual você só nota quando põe os pés nela ou quando alguém derruba algo nela e você chama a atenção daquela pessoa. Após isto, somente passa o pano (nem sempre úmido do jeito que deveria e um outro depois, seco) e está tudo no seu devido lugar, sem muitos cuidados ou elocubrações mentais sobre o que aquele pedaço de madeira faz ali.

Prudente nesta hora sentiu um aperto no coração. Nunca havia lhe ocorrido isso enquanto ajudava os outros com os seus problemas. Faltava-lhe ar certas horas e, por vezes, deixava até mesmo de ouvir certas palavras sôfregas expelidas por Anete como um pequeno rio contaminado com poluição, no qual ao longo do caminho pedaços maiores de lixo lhe são adicionados, até se perder na imensidão de um mar já moribundo.

Quando não conseguia ouvir-lhe, apenas sorria com o canto da boca e acenava com a cabeça para que ela continuasse. Ele lembrará sempre desta sexta-feira chuvosa. Voltou para casa e passou o final de semana todo tentando entender o que havia acontecido, numa vã esperança de descobrir porque aquela situação lhe apertava tanto o coração que, por vezes, preferiria que lhe fosse arrancado por uma mão, dilacerando o seu tórax e o deixando exposto. Preferiria ver seu coração em algum tipo de evento de arte moderna, atachado junto com uma pilha de concreto do que naquela lancinante sensação.

Preferiu evitar o café na segunda-feira. E na terça. Sentia uma tremenda vontade de ir até lá, de saber como Anete estava, como tinha sido o enfadonho final de semana com o marido (secretamente desejava que fosse extremamente enfadonho), como tinham sido as brigas, até imaginando sobre os conselhos que deu para ela em como agir em determinada situação, como proceder para avançar e ganhar uma preciosa vantagem psicológica na relação para que Anete pudesse reaver sua auto-estima e... Resignou-se. Achou-se pequeno demais para poder intervir naquela situação. Sentiu a sua sala agigantando-se. Faltou-lhe ar, quase como se algum gênio o roubasse.

Ao ir ao banheiro para molhar o rosto e tentar voltar ao seu trabalho, esbarrou com Anete no corredor. Seus olhos fundos de tristeza estavam maiores. A sua pupila, que antes tinha até um encanto, um brilho, tinha perdido completamente tudo aquilo que ele havia observado enquanto ela falava de sua adolescência, de seu trabalho e de como era importante para ela realizar a sua função e calgar lugares cada vez mais altos.

Anete não conseguiu lhe falar nada. Queria pedir sua ajuda, mas apenas o fez com os olhos. Duas flechas certeiras que atingirem Prudente no peito. Prudente fez-se de rogado e foi até o banheiro. Deixou escorrer algumas lágrimas de raiva: raiva de si mesmo, raiva da situação, raiva por aquele marido não a tratá-la direito, a angústia de querer resolver aquela situação para ela. Neste momento conturbado e de loucura, na qual o suor lhe pingava a testa; não um suor de esforço quente como numa partida de futebol, mas um frio. Temia que sua próxima conclusão fosse que estava apaixonado.

Puxou o lenço do seu rosto e enxugou a testa. Sabia que estava errado sobre a conclusão de estar amando uma completa desconhecida. Se conheciam há poucos meses, menos de três. Não iria deixar que esta suposição errônea interferisse tanto assim no seu cotidiano. Iria continuar ajudando os outros, qualquer um que lhe aparecesse. Seria como sempre foi, com um sorriso franco e largo. Voltou decidido para a sua sala, esperando a primeira pessoa que viesse lhe procurar para lhe oferecer seu ombro amigo.

Ao caminhar para lá, viu uma silhueta sentada em sua poltrona. Revigou-se. Recompôs-se, ajeitando o nó da gravata e buscou entrar na sua sala com sua alegria de volta. Fechou a porta, e sem olhar, deu um largo: - "Esperava você, mas não tão cedo" - ao falar isto, virou-se. Ficou chocado. Anete sentava ali, cabisbaixa, com seu rosto turvando-se em lágrimas de desespero e de um profundo vazio existencial. Ela meramente olhou para ele, fingindo um sorriso falso de não-dor e voltou a abaixar sua cabeça. Desejava em seu íntimo ser acolhida em um momento tão singular de sua vida.

Prudente aproximou-se e ajoelhou-se perto dela. Com sua mão, levantou sua cabeça e disse: -"Tudo vai dar certo." - Anete quase sorriu de verdade desta vez, com um pequeno esforço. Deu de ombros e tentou abaixar sua cabeça mais uma vez, mas foi impedida por um gesto gentil de carinho. A mão tocou-lhe a face, ruborizando um pouco aquele rosto aturdido. Prudente puxou uma cadeira para perto dela e tocou-a na mão de leve, fazendo com que o soluçar de Anete ficasse um pouco menor.

Ela começou a despejar toda a sua angústia: tinha um casamento que havia falido há algum tempo, somente havia sido feliz no primeiro ano. Tinha uma mãe doente a qual devia ajudar e um irmão temporão que também ajudava financeiramente. Não dependia do marido e não suportava mais chegar até aquele lugar que um dia chamou de lar, fingir que gostava do marido, fingir que o chamava de amor. Não suportava mais não ter um carinho, uma palavra de afeto, algo que pudesse fazer com que todos os dissabores laborativos e de cunho pessoal angariados durante o dia fossem embora. Tinha raiva da sua própria situação escolhida, de como aquela história poderia ter desembocado nesta crise.

Prudente só ouvia e buscava conter sua próprias lágrimas. Estava ali somente para ajudar Anete e não para fazer com que ela ficasse pior do que já estava. Vigorasamente, se esforçava para que isto não acontece, se esforçou tanto que quase conseguiu. Anete percebeu isto e levantou-se, lhe pedindo imensas desculpas: tinha atormentado a única pessoa que tinha lhe estendido a mão em anos. Ela simplesmente não aguentaria ver alguém tão gentil sendo obrigado a ser enfiado goela a baixo todo aquele melodrama que tinha se tornado a sua vida. Caminhou em direção a porta.

Ao caminhar até lá, ouviu um pare, quase que sussurrado entre-dentes, quase que inaudível. Virou-se e se deparou com Prudente com a mão direita suspensa no ar, quase implorando pela sua volta. Um gesto singelo e com uma dose de candura. Anete não entendia o que tinha acontecido e voltou a sentar-se ao lado dele. Vislumbrou aquele homem que nunca deixava nada lhe abalar, nem mesmo as piores coisas sobre as pessoas; por isto tinha ido lhe procurar, sabia que teria ali uma palavra boa e amiga.

Ele não conseguiu se conter. Pegou em sua mão. O coração de Anete sobressaltou-se, quase como se fosse ser cuspido pela boca. Colocou suas duas mãos sobre a de Anete e olhou nos olhos. Havia tanta amargura dos dois por motivos diferentes, tantas dores do cotidiano que deixam todos nós loucos, tantas facetas possíveis de ser humano presentes naquele pequeno espaço de tempo, tanto do não-dito tão habitual em nossas vidas, tantas brigas... Mas também tanta necessidade de dar e receber afeto, tamanho sentimento de bem-querer de um para com o outro, tanto... E aconteceu. Aconteceu o beijo.

Tímido, reconfortante, porém um beijo que se emoldurava perfeitamente entre aqueles dois lábios tão carentes de uma paixão. Do tímido foi avançando para um maior conhecimento daquelas bocas, das línguas, dentes, salivas... Tocaram-se a face com as mãos para sentirem aquele momento tão especial e romântico que há muito não acontecia na vida de nenhum dos dois. Um gosto de amor era sentido pelos dois e exalado por toda aquela pequena sala.

Ele parou. Tinha ultrapassado todos os seus limites de honestidade, do respeito a convenção social sobre o casamento, sobre todo o ato sagrado que revestia o matrimônio de duas pessoas. Envergonhou-se. Anete o encarou fundo, porém de maneira suave, como se advinhasse o que tivesse acontecido. Respirou fundo, tocou-lhe a mão e lhe disse: -"Você é muito especial para mim. Espero que possa entender o que vou lhe dizer: "Nada do que eu faça é para magoar você. Eu adoro você." Espero que possa saber, também, o que significa esperar."

Saiu de sua sala. Prudente, mais perdido do que um cego no meio a um tiroteio dentro de um cubículo, não sabia mais o que fazer. Foi para casa e tomou um porre homérico, sentindo-se o próprio herói romântico do século dezoito ou, melhor ainda, o típico personagem das tragédias gregas. Tinha infringido o seu dever de respeitar a moralidade, mas gostava tanto daquela mulher que passou por cima de tudo isto. Lembrava das peças trágicas que tinha assistido quando era mais novo: -"Ai de mim, Deuses... Ai de mim... Por que comigo, deuses?"

No dia seguinte, quase se arrastando, chegou ao seu escritório. Colocou sua pasta sobre a mesa, e tomou uma decisão. Iria falar com Anete de que tudo não tinha passado de um grande engano, que tudo não passava da culpa da carência excessiva dos dois, que tudo iria ficar enterrado no passado e que não passaria de uma mera aventura casual. Com passos firmes, caminhava até o escritório de Anete. Aguardou a sua secretária anunciá-lo e adentrou o enorme e charmoso escritório dela.

Anete fez sinal para ele sentar na cadeira a frente de sua mesa, saindo de sua cadeira e indo sentar ao seu lado. Prudente olhou-a e sentiu seu cérebro congelar. As palavras, antes quentes e decididas com um bom café preto bem forte, tinham minguado para um carioca muito fraco, daqueles de quando a padaria vai fechar e ele tem mais ou menos três horas de ter sido feito. Titubeou ao tentar falar algo, quando foi interrompido.

Anete agradeceu por ele ter vindo, não teria coragem de ter ido até a sua sala. Aquelas palavras fizeram a alma de Prudente prender o fôlego. Ele realmente estava certo sobre a atitude que iria tomar, só iria esperar que ela a tomasse. E ela não a tomou. Ficou estarrecido. Anete disse que nunca tinha experimentado algo como aquele beijo, nem visto aquilo em qualquer filme romântico nem em qualquer livro. Nem mesmo quando via seu ator preferido no filme, inunando seus sentidos de uma paixão platônica adolescente.

Apaixonara-se por Prudente. Pediu-lhe tempo para poder arrumar a sua vida, para que pudesse se estruturar a fim de que pudessem ter um possível relacionamento. Após todo aquele sentimento, ela sabia que seu casamento já tinha que ser descartado como uma mão ruim de pôquer, sem nem mais adiantar blefar para consegui o prêmio da mesa. E o prêmio daquela mesa não era nada além do pingar original do início. Era inútil.

Prudente concordou, contanto que pudessem se encontrar, mesmo sabendo que isto iria prolongar a decisão de Anete, pois iria alimentar o que ela mais desejava sem que ela precisasse sair da sua situação. Iria momentaneamente correr este risco porque precisava tanto dela quanto a flor precisa da chuva e do sol. Por enquanto, seria esta a decisão que aquele, digamos, casal, iria tomar. Se Anete iria tomar a decisão ou se Prudente iria esperar por ela... Este já é um tema para o próximo capítulo, sendo construindo a cada pequeno dia. A cada imensa saudade. A cada intensidade de amor.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Alice e Méleo

Alice era uma das melhores bailarinas de sua Companhia. Ninguém performava um solo como ela ou era uma parceira tão boa de palco quanto ela. Alice vivia a dança de uma maneira intensa, quase como se fosse uma experiência espiritual. Entrava praticamente em transe quando se vestia para o espetáculo. Vivia este mundo de uma maneira tão exacerbada que poderíamos dividir em seu mundo em dois: o mundo real e o seu próprio domínio da fantasia quando estava no seu mundo orínico da arte.

No palco, conseguia ver perfeitamente o Lago dos Cisnes: o gelo, os animais em uma revoada, pequenas pessoas que ela imaginava que paravam, vez por outra, para observarem aquela história fascinante que ali se desenrolava. No mundo real, tudo lhe parecia meio cinza, meio amargo. Amarescente, aliás, era o gosto que constantemente aparecia na sua boca em meio às tarefas mundanas.

Não apreciava o seu lar; um pai alcoólico, ausente, a tratava como um mero eletrodoméstico velho. Não apreciava sua filha e somente a tinha do seu lado para receber a pensão de sua falecida esposa. Não trabalhava e vivia sua embiaguez dia-à-dia com o provento que seria tão necessário para que Alice pudesse alçar vôos cada vez maiores em seu cotidiano, para que aquele deixasse de ser o cotidiano de Alice e passasse a ser somente uma lembrança do passado, uma recordação ruim como um daqueles filmes de terror.

Mas nada é como no País das Maravilhas, onde uma pequenina estranha pode mudar toda uma situação. Alice era claudicante em sua vida social, quase como se fosse uma sombra entre as pessoas. Nunca fizera questão de ter um relacionamento interpessoal, vivia única e exclusivamente para a sua arte. Seu ofício era oneroso para si: treinava aproximadamente oito horas por dia, todos os dias. No resto de seu tempo, escutava músicas, via outros tipos de dança. Buscava uma perfeição constante na sua própria realização.

Descendo a ladeira de sua casa, coisa que fazia habitualmente, intrigou-se com uma situação: havia um rapaz, ajoelhado de cócoras, com papéis na mão e uma caneta. Causou-lhe estranheza porque aquele outro não lhe parecia tão cinza: tinha traços de verde cintilante e dourado em sua cabeça. Ele tinha um volume de cores que a deixou observando-o durante um tempo. Percebeu que, durante este tempo, o rapaz apenas contemplava o que acontecia.

Ela deparou-se com o seu próprio tempo, eterno inimigo da precisão. Colocou-se a andar passadas largas para que pudesse chegar rápido ao seu ensaio. Tropeçou, sem querer, naquele jovem. Pediu desculpa e ele a retribuiu com um sorriso largo e acenou-lhe com a mão direita como se estivesse tudo bem. Alice parou mais um micro-momento e percebeu que o seu volume de cores tinha aumentado, mas não era hora para aquilo.

No seu ensaio, não entendeu como sua inteligência cinestésicao-espacial não a impedira de tropeçar em algo que já havia visto antes. Falhou em dois ou três passos durante o ensaio, sem saber exatamente o motivo. Aquela imagem daquelas cores não conseguia sair de sua cabeça, como se fosse algo que a consumia por dentro. Após o ensaio, voltou a procurar aquela curiosa figura. Estava, ali a poucos metros do tropeço, agora encostado no tronco da árvore, em um galho. Observava a rua.

Alice olhou para ele como se perguntasse o que ele fazia ali. Ele pediu para que ela subisse para que compartilhasse do que ele via. Disse ele: - "Nem sempre, na vida, podemos observar nós mesmos, precisamos sempre do outro ou do mundo para nos observarmos. Viu como as coisas mudam de perspectiva daqui do alto? Onde tropeçou em mim... " - apontou ele " nem parece tão significativo do ponto onde nos encontramos. Mas foi significativo ao tropeçarmos, não acha?"
Algo lhe subiu pela espinha, como que um raio vindo do cóccix até a sua medula. Como alguém poderia tratar algo tão banal com tamanha doçura e precisão de vocábulo? Fitou-lhe o rosto e percebia uma explosão de cores acontecendo na figura de sua fascinante companhia. Perguntou-lhe o seu nome.

-"Ah, que falta de educação a minha... Parece que guardei meus modos na gaveta. Pode me chamar de Méleo. Não me pergunte de onde minha mãe tirou este nome, mas esra é uma outra história. Tem uma carinha tão sonhadora... Seu nome tem gosto de A... Mas A de quê? Amanda, aquela que veio para ser amada? Ou Alice, da sonhadora personagem de Lewis Carrol?"

Alice assustou-se. Como alguém poderia desnudar-lhe daquela maneira, de um jeito tão sincero e carinhoso? Pendeu seu corpo para trás como se, insconscientemente, quisesse sair daquela situação constrangedora. Foi segura por seu acompanhante que, já àquela hora, parecia algo feérico em sua noite.
-"Por favor, fique mais um pouco, não precisa ir embora agora." - Sorriu-lhe um largo, muito mais bonito e colorido do que o do primeiro encontro - " Não se preocupe em me achar bruxo, perguntei por você para algumas pessoas. Só souberam me dizer seu nome, percebi que dançava pelos seus apetrechos que levava para algum lugar. Ficou curiosa para saber o porquê dos papéis?"

- "Sim" - disse ela, de uma maneira franca, porém tímida.

-"Sou poeta... Ou algo do gênero. Fiquei observando você também hoje e escrevi algumas coisas, mas só mostro se você aceitar jantar comigo hoje. Minha mãe é super-acolhedora com estranhas conhecidas minhas e meu pai parece mais um Hobbit do Tolkien, não vai se importar de receber mais alugém. Na verdade, vai fazer questão."

Alice não entendia mais nada... Ele era realmente um paciente que tinha escapado do sanatório local ou ele era mais uma de suas imaginações do palco que saltaram para a realidade sem que tivesse lhe contado nada e resolvera lhe pregar uma peça? Ainda no meio deste turbilhão, aceitou o convite. Nunca havia experimentado noite tão maravilhosa em toda a sua vida.

Comeu uma refeição familiar, sem que tivesse que cozinhá-la. Ouvi histórias do trabalho dos pais de Méleo, piadas do cotidiano da família, cobranças amigáveis sobre o seu desempenho escolar (era bom nas áreas humanas, mas não muito bom em química). Riram e se divertiram. Alice viu cores também naquela casa, cores que ela nunca acreditaria ver em casa alguma. A sua era quase negra, pairando uma aura de desgaste, como se fosse difícil se mover dentro dela para se atingir outro lugar. Uma casa vazia, porém densa.

Após ajudar a mãe de Méleo com os pratos, o rapaz a chamou para ir ver seus rabiscos poéticos. Eram lindos. Não só poesias, mas ele agora se especializava em contos, contos de cunhos existenciais e figuras de linguagens ricas, carregadas de signifcantes. O quarto dele parecia uma supernova de matizes. Li, lia e lia e não parava de se emocionar. Parou e sentiu um gelo no estômago e um calor pelo corpo ao se deparar com o título: "A uma pateticamente que precisava ser dançante". A data era daquele dia.

O conto descrevia a sua pressa, como se fosse o Coelho eternamente correndo. Admirou que o Coelho parou para observá-lo, um mero narrador, e evidenciou o fato do inconsciente daquela coelhinha em específico ter esbarrado nele. Descreveu aquele fato de "o melhor do não-dito é que ele tem uma carga muito mais saborosa de significados, gerando uma miríade de possibilidades de interpretação... Como a Cinderela, que deixou seu sapato no baile para ser encontrada mais tarde."

Alice sentiu um gogo na garganta. Ela tinha secado. Pigarreou de leve, sentindo o toque gentil de uma mão em seu ombro. Arrepiou-se desde a ponta do dedo mínimo até o último fio de seu cabelo. Virou-se e observou os olhos daquele poeta. Os dele brilhavam cada vez mais intensamente ao ver o seus olhos brilharem. Não entendia mais nada, nem precisava. Somente sentia a sua respiração.

A respiração passou a ser só o coração, só sentia o seu ritmo. Aumentou. Muito. A respiração encurtou, sua boca tornou-se ainda mais árida. Suas pupilas se dilataram e não conseguia escutar nada ao seu redor. As cores não haviam sumido, só eram intensas demais para serem percebidas naquele Big Bang de sentimentos que estava se formando de uma maneira elouquecedora, frenética... E houve o beijo.

Longo, demorado, molhado, apaixonado... E muitos outros beijos depois deste primeiro beijo. Carinhos e afetos, quase juras foram trocadas, mas o momento era de apenas ímpeto fervoroso da luxúria. Amaram-se intensamente e por tantas vezes que não seria possível contabilizar, quantificar em número o prazer que um gerava para o outro. Dormiram juntos, com Alice aconchegado em seu peito.

Alice tinha encontrado algo precioso em sua vida. Na sua atual idade, não poderia ainda sair da casa de seu pai sem um devido processo legal. Não que ele a agredisse e a renegasse: apenas não a amava. Alice esperaria um pouco mais de tempo até que pudesse administrar a pensão que sua mãe havia deixado para ela. Este foi um dado do qual ela nunca mencionou ao seu amante.

Tinha vergonha de viver naquela situação, por ainda depender daquilo que a agredia por não dar-lhe mais o que era necessário. Nunca o levou em sua casa. Iria magoá-lo demais ao fazer isto e preferiu apenas viver o momento, um passo de cada vez com aquele surpreendente rapaz. O tempo iria dizer o que o querer de um pelo outro poderia dizer, o quão longe poderiam ir. Ali seria o conto de fadas moderno, com toques de romantismo para que fosse o banquete para aquelas duas almas carentes e sinceras.

domingo, 18 de abril de 2010

Ausência feminina por uma visão masculina

Hoje senti sua falta de manhã. Assim que acordei, procurei em vão seu corpo no meu colchão vazio. Procurava você com um pequeno sorriso no canto do rosto, ainda um resquício da vigília noturna que tive você com a personagem principal do meu palco anímico. Tudo caiu por terra, ao ter a certeza racional de que embora desejoso que estivesse ali e como um presente, não se encontrava.

Ao tentar apagar o sorriso do meu rosto, para levantar-me e escovar os meus dentes, fui surpreendido com o seu gosto em minha boca. Começo a pensar que você age como uma assombração, um fantasma que me persegue a cada pequena fração de tempo do seu dia. Digo, do meu dia. Será que nem mais os meus dias serão meus com a tua pesarosa ausência?

Não, eu vou me controlar. Escovo os dentes, mas não sem escutar a tua doce risada, aquela quando é surpreendida por um chiste entre os momentos de prazer que sobe em espiral o volume, entorpecendo-me os sentidos e inebriando-me por ter conseguido dar-lhe um sorriso após um dia tão conturbado, tão cheio de tormentas. Navega, neste pequeno momento de recordaçõa, junto a calmaria do oceano do amor, com possibilidades de turbilhões de prazeres a qualquer estação.

Quando tento caminhar para o chuveiro, nem ao menos chego a relutar. Só atenho-me ao não mais usar o nosso sabonete para que não traga uma outra lembrança sensorial tão temida. Ao ligar a água, lembro-me do seu pedido para deixá-la mais quente. Depois, mais fria... Até chegar a um meio termo típico da indecisão feminina tão agradável. Ao banhar-me, sinto a sua falta naquele box vazio. Enxugo-me.

Ao voltar para o quarto, mais uma vez deparo-me com a cama vazia. Passo a toalha pela cabeça, apenas tendo a derradora certeza de que demoraremos a nos encontrar de novo. Sua roupa não está espalhada, sua lingerie não está jogada em qualquer lugar pela volúpia ardente de nossos desejos mais loucos, da nossa sede pela saliva um do outro. Nada esta lá. Só há a falta. Dói-me um pouco, sinto um pesaroso sentimento em meu coração, quase como se uma mão pegasse e o apertasse, aos poucos, para afirmar uma coisa que há muito sei que é verdade: estou só naquela manhã.

Tento enxugar uma lágrima que busca caminhar pelo meu rosto, quase como se buscasse irrigar os campos do teu apartamento. Ah... Mas o teu cheiro, misturado ao daquele perfume sobe-me as narinas quando tento respirar fundo para conter o pequeno riacho que se formava no meu rosto. Teu cheiro ganha de novo, levando-me a lembrar dos teus olhos fulminantes e famintos por paixão, seus sussurros, o calor quente do teu corpo, a chama que sobre pelo teu caminho, o suor, o seu gosto, a sua...

E suspiro fundo, ansiando cada dia mais pelo teu encontro. Não sei mais o que querer ou o que não querer. Sei que preciso de você. Disso eu sei... Sei que anseio pelo nosso encontro. Por menor que ela seja, por mais ínfimo que possa ser... Nosso momento. Só esta esperança me dá forças para poder prosseguir o meu dia, para que eu possa caminhar nesta seara sem que você esteja do meu lado. Anseio o dia que poderemos dividir nossos despertares, mas até lá... A única certeza de presença que terei em minha vida é viver a tua ausência.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O guerreiro e a princesa

Era uma vez um guerreiro e uma princesa de um antigo país oriental. O reino encontrava-se em verdadeiro pandemônio: uma disputa entre dois ramos da família relapartiu ao meio o que antes era um próspero reino. Famílias destroçadas, morte, fome... Nada de bom poderia resultar deste conflito. O povo sofria e necessitava de algo que desse a eles esperança, algum parâmetro, mesmo o que de uma velha e antiga história, por mais fantasiosa que fosse de que o futuro poderia ser melhor do que aquele caos.


Havia uma antiga lenda de que uma princesa que nasceria com os cabelos negros como a noite e a pele branca como a neve poderia levar paz ao conflito que poderia levar o reino à ruína. Tudo poderia ser resolvido. Não que não houvesse custos: após batalhas, mesmo as mais pacíficas, as feridas levam tempo para cicatrizar. Mesmo que fosse somente destruída a matéria, haveria a necessidade de recompor o sentimento de lar das pessoas. Nada que não pudesse ser feito com o tempo, esforço e crença.

Nosso guerreiro sempre foi o mais próspero e promissor de toda a sua aldeia. Impetuoso, irascível, poderia dizimar dez homens sozinho em um confronto. Era um excelente lutador. Seu pai o tornou um guerreiro, embora fosse um simples pescador. Dentre todos os seus ensinamentos sobre a vida, buscou mostrar ao seu filho que levava tempo para se pescar uma carpa ideal, mas para que tal tento fosse realizado, deveria ter a paciência necessária e habilidade necessárias.

Ele aprendeu isto e tantas outras artes da guerra. Seguia seu Código de Honra de sempre defender a família real. Quando ela se partiu em conflito, decidiu apoiar a filha do imperador bondoso e justo que sempre disseminava o crescimento do reino, ao invés do irmão do imperador corrupto. Resolveu, após saber da crise, rumar para a capital para que seus préstimos pudessem ser usados em campos de batalha de maior magnitude.

Rumando para a capital, percebeu que havia sido realizada uma emboscada junto a carruagens reais. Mais do que rapidamente, agiu como um relâmpago para derrubar seus adversários e preciso como a águia. Foram sendo derrotados um a um. Quando percebeu uma calmaria naquele campo, resolveu ajudar os poucos feridos com vida. Foi quando ao realizar um curativo em um ferido, sentiu uma sombra nas suas costas.

Sentiu um adocicado perfume de jasmin. O cheiro o inibriou por um momento, o suficiente para que se voltasse mais para a direção do sol, onde se encontrava aquela figura feminina. O sol emoldurava o seu corpo e o guerreiro ajoelhou-se em respeito a uma mulher da nobreza. Ela pediu que ele levantasse, tocando o seu ombro ferido. Ele gemeu de dor. Ela, se inclinou e tratou de cuidar para que a bandagem, improvisada com seu lenço de seda verde, pudesse estancar seu ferimento após tê-lo lavado.

Quando observou mais de perto, fitou-a nos olhos. Nunca tinha visto olhos tão bem adornados de uma misteriosa presença de espírito. Aquela mulher era serena tal qual um rio, porém escondia dentro de si a força de mil dragões. Ficou impressionado com tamanha ousadia de sua parte, retirando os olhos de sua direção. Ela sorriu, tímida, buscando cuidar mais do ferimento do que de seu salvador.

Levantaram-se do chão. Quando os dois estavam em pé, ela sorriu meigamente, indo agradecer. Foi quando ele percebeu que seu sorriso transformara-se, abrindo mais largo. Seus olhos dilataram-se. Sua boca se abriu e engoliu a seco, seu corpo cedeu. Havia sido atingida por uma seta de um arco. Buscou, em vão, o agressor: ele já havia cumprido a sua vil e covarde tarefa.

Deitou-a no chão, de lado. Retirou a flecha com um cuidado infinito, mas nada mais poderia fazer. Ela iria morrer. Ele teria andado tão longe, teria vindo de um lugar tão distante para que não conseguisse cumprir a sua tarefa? Ele não poderia mais ajudar a reestabelecer a paz no seu reino, paz que tanto presava. Sentiu-se impotente.

Foi quando sentiu uma mão no seu ombro. Era uma mão idosa, de um velho sacerdote. Lamentava a morte da princesa, mas dizia que poderia ter uma solução. A princesa poderia viver desde que um virtuoso guerreiro desse sua força vital a ela em troca de que ele ficasse aprisionado no tempo, até que a própria princesa o livrasse da sua prisão que seria o seu próprio corpo.

Percebeu que o olhar da princesa se perdia. Sua força se esvaía rapidamente. Aceitou que o sacerdote fizesse o pacto, somente queria se despedir de sua princesa. Ajoelhou, como em reverência a sua realeza. Uma lágrima minou, enquanto a pegava com sua mão direita sua mão esquerda e pousava a palma da mão esquerda na sua. Levantou sua mão esquerda e beijou-a na mão. Havia transferido para ela sua força vital e transformara-se em uma estátua de pedra.

O sacerdote explicou para a princesa o que ocorrera. Ela, por sua vez, levou a estátua e ordenou que o sacerdote encontra-se uma solução para que pudesse libertar seu guerreiro. Em vão. Somente pôde contribuir, a princesa, com a restauração de seu reino mediante o amor incondicional daquele homem. Em uma atitude desesperada, pedia que outras mulheres do reino pudesse trazer de volta aquele que ela mesma havia congelado no tempo. Sem sucesso.

Nosso guerreiro, porém, não estava morto. Podia ver tudo de sua prisão e aguardava ansiosamente para ser liberto. Minutos, horas, dias, meses, anos... Décadas. Décadas se passaram enquanto nosso nobre guerreiro apenas podia observar a evolução do mundo. Seu sentimento de angústia era indescritível, mas sabia ele que tinha optado pelo caminho certo, pelo caminho do seu sentimento verdadeiro. Deveria acreditar naquela amor que nasceu em poucos minutos, algo tão devastador e nobre que estava arraigado em sua alma.

Milênios se passaram. Ele observa o mundo já com uma vaga lembrança de algo que ocorrera. Confudia-se com fatos, tamanha a quantidade do desenrolar histórico que havia presenciado. Por vezes, esquecia do rosto de seu amor, tentando apenas uma vaga idéia de um sentimento. Lembrava de uma falta que tinha dentro dele. Chorava, por dentro; berrava. Porém a sua prisão permanecia incólume. Nada poderia demovê-lo desta situação: tinha aberto mão de sua vida pela de uma mulher que amou apenas ao vê-la.

Buscou, neste momento tão confuso, apenas se acalmar naquele museu antigo. Buscou as palvras de seu pai sobre ser paciente para se pescar uma boa carpa. A carpa ideal... Era isto o que alguém dizia... Era seu pai  que dizia. Começou a lembrar de sua infância, de tudo, bem devagar. Estava relembrando cada passo seu na sua própria história e todas as hitórias que havia presenciado nestes milênios de espera.

Perdido entre pensamentos e emoções, sentiu o toque quente em sua mão. Nunca tinha sentido calor, frio, nada desde o momento... Desde o momento de sua escolha. Percebeu que uma mulher, alva como a neve e com os cabelos negros como a noite o tocavam. Ela o fazia com se fosse em um tipo de transe, como se fosse imbuída por algo maior do que ela mesma.

A mulher tocou as mãos do guerreiro e acarinhou seu rosto. Um sorriso tímido subiu-lhe a face. Ela, então, tocou os dedos da estátua, quase como se busca-se entender através dos sentidos o que de tão especial a entretia naquela estátua tão específica. Uma lágrima minou no seu rosto, percorrendo sua bochecha, passando perto de seus lábios e indo, vagarosamente em direção ao seu queixo.

Escorreu a lágrima, tocando a mão da estátua. Naquele momento, o guerreiro percebeu que toda a agonia da espera, toda a desesperança, toda a eternidade de tormentas que tocavam sua alma, quase apagando de sua lembrança quem ele era... Nada disso era grandioso demais ao simples gesto do seu amor.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Agenor e Thereza

Agenor era fascinado por histórias. Era um leitor ávido, lia sempre um livro atrás do outro. Gostava das histórias mais "infantis", alguns contos de fada. Era fascinado pelas criaturas mitológicas e também pelas criaturas criadas por grandes romancistas. Quanto mais exótica fosse a criatura, quanto mais antagônicos fossem seus sentimentos, quanto mais precisa fosse sua tensão interna, mais Agenor se apaixonava por ela.


Agenor, porém, só se apaixonava por criaturas que fossem pertencentes ao mundo da literatura. Detestava aquelas edições de luxo sobre as histórias com desenhos para demonstrar como aquelas criaturas eram. Ele não precisava de nada daquilo para que estas criaturas tomassem vida. Ele simplesmente lia a descrição e a imaginava. Este era o melhor sentido para ele: criar, a partir da descrição do outro, a sua própria criatura. Uma criatura única e exclusiva dele, algo que ninguém poderia lhe tirar ou, nem ao menos, copiar. Estava guardada em sete chaves no seu coração.

Na vida pessoal, Agenor era desastroso. Ele não conseguia se relacionar com as pessoas de maneira coerente, nem ao menos sentimental. Era habitualmente seco, o que era péssimo para os seus negócios. Ele proprietário de uma livraria, sempre cresceu rodeado por eles. Em sua infância solitária e estéril dentro de uma casa em que as pessoas eram distanciadas, seu único consolo estava nos livros. Para poder suprir sua falta de habilidade social, ele contratou uma ajudante extremamente amigável, mas sem a menor noção do que seria um livro de literatura. Ensinou-a o básico, mas ela nunca gostou de procurar ler outra coisa que não fosse para vender. E suas vendas subiram.

Em um dia chuvoso, não tão incomum nesta época do ano, em que a cidade alaga e tudo pára em todo o lugar (não, não há qualquer menção implícita ou explicíta sobre a cidade do Rio de Janeiro, a não ser o fato do autor morar nela), sua ajudante não compareceu. Ele teria que enfrentar durante todo aquele dia todas aquelas pessoas odiosas e frias, que poderiam lhe machucar a qualquer minuto. Não que ele fosse rabugento, mas ele gostava somente de se proteger dentro de sua bela concha.

Arrumando alguns livros, ouviu a sineta pregada no batente da porta, fazendo o barulho típico de que alguém estava adentrando o seu nobre e humilde estabelecimento comercial. Pigarreou. Quando levanta a cabeça e olha para porta, repara que a luz meio esverdeada da entrada refletia sobre uma pele branca feminina. Entrigou-se com aquele fato, parecia uma fada européia.

Quando ela deu dois passos a frente, percebeu que a luz refletia nos seu olhos. Suas órbitas negras pareciam não ter distinção entre as suas duas pupilas e as suas íris: era simplesmente duas intrigantes luas. Seus lábios eram delicados, quase que desenhados sobre seu rosto fino e seus traços exóticos. Ele tentou recompor-se para tentar decifrar mais aquela quimera que acabara de adentrar ali.

Algo tocou o coração de Agenor. Thereza, como se chamava, tinha entrado ali por acaso para se proteger da chuva. Procurava um lugar calmo. Encontrou Agenor, uma figura quase exótica pelos seus óculos antiquados, porém charmosos, e seu rosto delicado. Tinha notado suas mãos pequenas e delicadas, quase femininas, mas que pareciam transmitir uma maciez e bondade acalentadoras.

Os dois conversaram por horas, com boas doses de café e risadas. Conversaram sobre mitos, palavras exóticas, sobre personagens e sobre livros. Ambos descobriram que tinham várias coisas em comum, além de possuírem uma atopicidade crônica em relação ao frio, poeira e um certo tipo de fruto-do-mar específico da região da Guatemala. Foi quando em um descuido, Thereza esbarra na xícara e derrama um pouco de café em cima de um texto em espanhol que Agenor estava lendo.

Pedia mil desculpas pelo esbarrão, estabanada como sempre. Sempre a comparava com o personagem Pateta porque era desestrada, mas sempre bem-intecionada. Riram. Agenor mostrou uma bela canção em espanhol para Thereza, sobre um amor que transcendia todos os limites do que os seres humanos poderiam julgar possíveis. Era uma declaração tão pura e singela de amor que emocionava só de ler os primeiros e delicados versos.

Thereza realmente não aguentou. Enquanto Agenor ainda limpava os versos, Thereza percebeu que aquele homem pelo qual ela não dava nada inicialmente, a não ser usar óculos - o que ela considerava extremamente sedutor - nunca iria tomar o primeiro passo naquele momento. Pela sua história de vida e decepções amorosas, somente se Thereza tentasse alguma coisa ele poderia ceder a um desejo que ela esperava que ele também nutrisse.

Ela parou. Ele, ainda distraído, buscava um lenço no bolso do paletó. Quando acabou, percebeu que aquela fascinante criatura o estava olhando, como que se tentasse desvendar o enigma da esfinge. Parou. Os dois ficaram congelados por poucos segundos, que pareciam eóns. Thereza sentiu abriu sua boca e inspirou por ela, sentindo sua boca secar. Seu estômago parecia o pólo norte enquanto um vulcão adormecido jorrava por todo o seu abdômen.

Agenor estava fascinado somente em observar aquilo tudo. Piscou os olhos e tentou sentir o perfume que exalava de sua companheira. Quando reabriu os olhos, sentiu a aproximação daquele corpo junto ao seu, mais especificamente dos lábios dele tocando os seus. Sentiu como se uma explosão cósmica estivesse acontecendo naquele exato momento, naquela fina sintonia que tinha se estabelecido com os dois, embora tão pouco tempo de convivência.

Amaram-se no balcão, nas mesas, entre as pratileiras, no chão... Fizeram isto durante horas. Nunca duas pessoas tinham desnudado tanto suas almas, seus corpos, seu prazeres tanto um para o outro e de uma maneira tão gentil e delicada que poderia ser, senão toda a obra, uma grande parte das 1001 Noites.

Porém, ali... Ali não era uma história distante do cotidiano, algo que pudesse ser comparado com uma prontuário de medicina, algo racional, algo que fosse dedutível por uma lógica-matemática. Ali estava presente tudo o que não é lógico, tudo o que apenas é: o amor. E tudo porque simplesmente Thereza, de tanto andar em uma chuva torrencial e assutadora, resolveu apostar em um acolhimento em um pequeno estabelecimento comercial de literatura, algo típico de um livro. E com um final extremamente feliz.

Clemêncio e Eleutério

Clemêncio é um típico brasileiro. Acredita demais no futuro, nas suas variadas possibilidades de dar certo na vida, na sua gana para que o país consiga se desenvolver e que sua vida melhore também . Clemêncio também deseja uma esposa bonita, inteligente, simpática e trabalhadora. Ah, precisa ser também sua companheira para todas as horas, para todo o sempre.


Clemêncio só esquece que nada na vida é para sempre, nem nós mesmos. Enquanto ele senta, esperando que o futuro caia no seu colo como um presente dos seus, como algo que o Papai Noel colocaria debaixo da nossa árvore no véspera de Natal, ele também esquece que nada na vida é de graça, nada pode ser ganho se não houver alguma perda em sua vida, não sem que haja alguma vontade de sua parte também.

Há palavras que Clemêncio destesta completamente em nosso vocábulo. Os vernáculos tais como decisão, arriscar (em todas as suas conjugações verbais, tanto nas flexões em pessoas quanto nos próprios tempos verbais)... Decisão é cindir entre duas ou mais coisas, para que possamos trilhar um caminho que, no nosso entendimento momentâneo da situação, é o melhor caminho para seguirmos. É, em suma, correr riscos. Hum... Nem fale isto perto dele, meu caro(a) leitor(a). Faria-lhe subir um calafrio pela espinha e o pertubaria profundamente.

Mas Clemêncio nunca pensou em uma outra palavra, até que a viu em um ponto de ônibus. Era uma propaganda de um desses concursos públicos, no qual dizia: "Aquele que almeja o que não tem, precisa fazer o que nunca fez - Curso Sacrifício". Ah... Aquilo o assustou tremendamente. Ele que sempre queria ter feito um concurso para ter uma melhor condição de vida para si, para que pudesse voltar a sua tão sonhada faculdade de direito a qual tinha largado por falta de condição financeira... Aquilo o atingiu como uma seta no seu coração, tão profundamente que Clemêncio deixou de fazer tudo o que tinha planejado para o seu dia. Tomou um ônibus e foi em direção ao curso.

Chegando à recepção, fez um verdadeiro escarceu com a atendente. Queria imediatamente falar com o dono daquele curso, aquele ser odioso que fazia propagandas indevidas, que fazia coisas que nunca poderia fazer, que provocava as pessoas a tal ponto e de maneira tão vil que deveria ter uma lição. Uma boa sova, se possível, como dizia a sua mãe. Clemêncio continuou a riscar no ar, como um esgrimista faz com seu terçado, palavras, frase eloquentes e que pareciam ser retiradas de contos de um blog da internet.

Nisto, abre a porta um senhor, daqueles típicos velhinhos simpáticos que sempre desejamos ajudar a atravessar a rua. Ele vinha andando devagar, com sua bengalinha. Ao observar Clemêncio, alterado, colocou a mão em seu ombro e perguntou se tudo estava bem. Clemêncio, entre lágrimas e palavras, parou e conseguiu se conter diante dele. O senhor lhe ofereceu um copo de água e ele aceitou.

Senhor Eleutério era o dono do curso. Convidou-o a ir até a sua sala para poderem conversar. Clemêncio ficou sentado, esperando o que poderia vir daquele homem simpático, com seu rosto já maturado pela idade. Senhor Eleutério se recostou na cadeira e começou a falar com ele sobre a sua vida. Como ela tinha sido e como tinha feito o curso que fez.

Eleutério, dispensara já o senhor para Clemêncio (embora o mantivesse por respeito), era procurador do Ministério Público do Trabalho aposentado. Tinha feito vários concursos na sua vida. O primeiro de segundo grau para o próprio Ministério Público do Trabalho. Era técnico administrativo. Apaixonou-se por duas coisas naquele momento em sua vida: o Direito e sua esposa, Rubia, cinco anos e meio mais velha do que ele.

Ele tinha decidido, então, fazer de tudo, com todas as suas forças para dar àquela mulher tudo o que uma mulher daquele porte merecia. Estudou mais ainda e formou-se. Tiveram uma filha chamada Maria Luísa. Ele passou para Oficial de Justiça do Tribunal Regional do Trabalho. Após isto, continuou a estudar. Adotaram uma criança junto ao Ofarnato de São Bento, chamado Miguel. Passou para Promotor Público do Trabalho. Tiveram outra filha, chamada Sílvia e adotaram mais um menino, Rafael.

Aquele história tinha impressionado Clemência. Quando Eleutério percebeu a comoção de Clemêncio, estendeu-lhe um lenço para que enxuga-se suas lágrimas. Eleutério falou, então, o que o motivou a chegar tão longe: Sacrifício. Pasmou Clemêncio com isto. Eleutério explicou-lhe que Sacrifício nada mais era do que sacro oficío, ou seja, um ofício sagrado que ele, Eleutério, dedicara a sua esposa e a sua profissão.

Eleutério ainda ofereceu um emprego para Clemêncio, para que pudesse trabalhar na secretaria do curso e para que pudesse estudar para o concurso de técnico do Ministério Público da União que iria abrir. O próprio Eleutério tiraria dúvidas atinentes a matéria de Clemêncio, seria o seu professor particular. Clemêncio iria aceitar, mas perguntou a Eleutério porquê ele fazia isto. Eleutério afirmou que um dia, quando todos não mais acreditavam nele, alguém lhe estendeu a mão em um momento tão difícil quanto o de Clemêncio.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Julius e seu caminho de cereja

Julius era um homem intrigante. Ele era um daqueles tipos taciturnos, os quais ninguém presta atenção quando o vê da primeira vez. De fato, poucos percebem que ele está lá. Poucos mesmo. Julius prefere se sentir invisível para todos, apenas sendo seletivo e escolhendo quem poderá atacar.


Ah... Não, Julius não é um assassino psicopata. Ele é apenas uma pessoa que gosta de ter certeza do caminho que vai tomar antes de percorrer a estrada. Com seus olhos de águia, Julius busca sempre ultrapassar o senso comum para ver mais longe, até o objetivo necessário para que ele possa se comprometer com algo.

Andando, um dia, pelas ruas, observou uma mulher extremamente interessante. Mais baixa que ele, cabelos curtos e olhos profundos. Julius ficou intrigado com aquela presença. Estava sentando, tomando uma taça de vinho de tons violáceos, com leveza e suavidade no paladar em um belo copo de vinho. Quando viu aquele ser, irradiando uma energia nunca pensada, ele ficou curioso.

Passou a seguir pelos becos aquela aparição em sua vida. Como alguém pode aparecer de repente e nos roubar uma parte dos sentidos? Julius precisava saber quem era aquela mulher com uma rosa vermelha no cabelo, disposta de maneira tão harmônica quanto romântica. O que ela deveria pensar? Como seria seu modus operandi em relação a vida? E, o mais importante para Julius, o que ela traria quando ele usasse a sua visão?

Amarena, como ele saberia que era seu nome mais tarde, apenas parou. Ficou admirando o belo luar que fazia, como a luz da lua refletia no mar. Julius admirou aquela cena por um instante. Como aquela cena lhe fazia lembrar de quadros, peças, novelas... Coisas que só meramente existiriam em fantasia. Julius, então, resolveu usar o seu poder naquela jovem, de curvas atraentes.

Ao visualizar o futuro com olhos de águia, Julius viu um caminho confuso. Confuso, para ele, era de uma alegria esfusiante e como se fosse a partícula fundamental do amor, o bóson de Higgs da união entre homem e mulher. Tamanho era o elan que aquela jovem exala que inibriou Julius a ponto de que ele se aproximou dela e, cuidadosamente, a mordeu.

Ao cravar seus dentes em seu pescoço, de modo gentil, Julius provou o gosto do seu sangue. Não era um sangue normal. Parecia o sangue de uma fada, um tipo de fauno que possui uma energia tamanha a qual poderia nutri-lo por meses com apenas um gole. Ao tocar com seus lábios o pescoço, sentiu algo que nunca tinha sentido antes: sentiu-se atraído por aquela pessoa, aquela pessoa que somente deveria ser seu alimento.

Soltou um gemido baixinho de satisfação no próximo gole. Ele estava completamente confuso, indeciso... Deveria parar para que parasse de chamar atenção? Deveria continuar? Deveria deixar que a jovem seguisse seu caminho para que pudesse seduzi-la uma outra vez? O que ele deveria fazer? Nunca se sentiu tão confuso em relação aquela situação. Ainda com a cabeça tonta por tanto prazer proporcionado, surpreendeu-se.

-"Continue..." - disse a jovem - "Eu vim até aqui porque observei você, seu jeito misterioso, sua pele branca refletida pela lua, seus olhos negros e seus cabelos mais negros ainda. Intrigou-me ver um ser tão taciturno, mas que pode provocar tanto prazer simplesmente por seguir sua natureza."

Julius assustou-se. Aquilo abalou o seu ser de modo tamanho que nunca poderia retomar ao status quo ante. Como aquela jovem o viu? Como aquela jovem conseguiu o decifrar em uma fração de segundos, como se fosse em um compasso musical? E como aquela jovem a fascinava de uma maneira tão profunda que ele não a queria largar nunca?

Conversaram várias horas. A cultura de um, a escolha de palavras, as colocações, as pausas dramáticas, os risos, tudo... Suas palavras a seduziam de uma tal maneira que nem todas as línguas antigas juntas poderiam descrever. Tudo apenas sincronisava aquele velho vampiro com aquela jovem de aparecem tão mística, tão indecifrável que lhe parecia a própria Isís com seus véus. E como ele desejava mais e mais aqueles minutos preciosos de sua noite com ela.

Acontece que os vampiros não sobrevivem durante o dia. E Julius deveria proteger aquela jovem dos outros. Seria o pequeno segredo dele, uma paixão já naquela altura de sua imortalidade não era algo com que ele contava. Ele se sentia confuso, aquela pequena Cereja abalava o seu mundo de uma maneira tal que ele não sabia o que fazer. Apenas desejava mais e mais dela.

Julius não sabia, mas descobriu mais tarde que Amarena nunca seria do tipo indefesa. Ela sabia como aquele jogo funcionava e estava alerta a tudo o que acontecia, por vezes estava a um, dois passos a frente de Julius com seus séculos de idade. Isto acontecia cada vez que ela tomava uma atitude inesperada. Só que isto... Isto só fazia aquele velho vampiro, acostumado com a morasidade e a simplicidade de pretenções da sua vida imortal jamais poderia imaginar. Algo único e precioso... Mais valioso do que qualquer jóia.
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