quarta-feira, 21 de abril de 2010

Prudente e Anete

Prudente era uma figura bem peculiar. Ele sempre podia resolver o problema de todas as pessoas. Uma das pessoas mais gentis e solícitas da face da Terra, ele sempre tinha mais um minuto do seu dia para doar a um amigo que estivesse passando por algum tipo de problema ou até mesmo um desconhecido que precisasse lhe falar sobre algo ou lhe pedir um trocado para poder voltar para a cidade do interior de onde tinha saído a convite de um primo que não se encontrava em casa.


Prudente não se importava... Na verdade, ele se importava em estar disponível para os outros. Tinha o trabalho ideal: funcionário de uma empresa em que mal fazia nada, podia sempre estar disponível nos cafés para poder ajudar qualquer um. Embora fosse desse jeito, poucas pessoas lhe faziam caso. Na verdade, nenhuma pessoa o considerava; começavam a conversa perguntando como ele estava. Ele respondia um: -"Bem, e você?" - e a pessoa desandava a falar sobre seus problemas pessoais. Prudente ajudava, um a um.

Foi quando conheceu Anete. Ela trabalhava em um outro setor da sua empresa, quando se conheceram em uma pausa para o café. Ele achou engraçado o jeito que ela molhava a rosquinha que ele adorava em sua infância no café e a deglutia. Achou interessante e observou que os olhos dela eram fundos, como se vivesse sempre cansada e stressada. Ao continuar seu interesse, percebeu que ela derrubou o copo de café no chão. Ele, do seu jeito já lugar comum, foi até lá e enxugou o chão. Anete sorriu, com o gesto de delicadeza.

E assim começaram a conversar. Poucas coisas eram ditas nos primeiros dias, mas sempre um tentava chegar naquele momento perto do outro. Algo tímido, incialmente, por parte de ambos, mas que a cortesia de Prudente e a vivacidade de Anete foram cedendo pouco a pouco. As barreiras sociais iam caindo delicadamente e logo passaram a conversar sobre vários tipos de assunto. Foi quando Anete lhe contou seu problema.

Ela era infeliz no seu casamento. Seu marido a tratava como um objeto de decoração na sala, como se fosse uma mesa de centro na qual você só nota quando põe os pés nela ou quando alguém derruba algo nela e você chama a atenção daquela pessoa. Após isto, somente passa o pano (nem sempre úmido do jeito que deveria e um outro depois, seco) e está tudo no seu devido lugar, sem muitos cuidados ou elocubrações mentais sobre o que aquele pedaço de madeira faz ali.

Prudente nesta hora sentiu um aperto no coração. Nunca havia lhe ocorrido isso enquanto ajudava os outros com os seus problemas. Faltava-lhe ar certas horas e, por vezes, deixava até mesmo de ouvir certas palavras sôfregas expelidas por Anete como um pequeno rio contaminado com poluição, no qual ao longo do caminho pedaços maiores de lixo lhe são adicionados, até se perder na imensidão de um mar já moribundo.

Quando não conseguia ouvir-lhe, apenas sorria com o canto da boca e acenava com a cabeça para que ela continuasse. Ele lembrará sempre desta sexta-feira chuvosa. Voltou para casa e passou o final de semana todo tentando entender o que havia acontecido, numa vã esperança de descobrir porque aquela situação lhe apertava tanto o coração que, por vezes, preferiria que lhe fosse arrancado por uma mão, dilacerando o seu tórax e o deixando exposto. Preferiria ver seu coração em algum tipo de evento de arte moderna, atachado junto com uma pilha de concreto do que naquela lancinante sensação.

Preferiu evitar o café na segunda-feira. E na terça. Sentia uma tremenda vontade de ir até lá, de saber como Anete estava, como tinha sido o enfadonho final de semana com o marido (secretamente desejava que fosse extremamente enfadonho), como tinham sido as brigas, até imaginando sobre os conselhos que deu para ela em como agir em determinada situação, como proceder para avançar e ganhar uma preciosa vantagem psicológica na relação para que Anete pudesse reaver sua auto-estima e... Resignou-se. Achou-se pequeno demais para poder intervir naquela situação. Sentiu a sua sala agigantando-se. Faltou-lhe ar, quase como se algum gênio o roubasse.

Ao ir ao banheiro para molhar o rosto e tentar voltar ao seu trabalho, esbarrou com Anete no corredor. Seus olhos fundos de tristeza estavam maiores. A sua pupila, que antes tinha até um encanto, um brilho, tinha perdido completamente tudo aquilo que ele havia observado enquanto ela falava de sua adolescência, de seu trabalho e de como era importante para ela realizar a sua função e calgar lugares cada vez mais altos.

Anete não conseguiu lhe falar nada. Queria pedir sua ajuda, mas apenas o fez com os olhos. Duas flechas certeiras que atingirem Prudente no peito. Prudente fez-se de rogado e foi até o banheiro. Deixou escorrer algumas lágrimas de raiva: raiva de si mesmo, raiva da situação, raiva por aquele marido não a tratá-la direito, a angústia de querer resolver aquela situação para ela. Neste momento conturbado e de loucura, na qual o suor lhe pingava a testa; não um suor de esforço quente como numa partida de futebol, mas um frio. Temia que sua próxima conclusão fosse que estava apaixonado.

Puxou o lenço do seu rosto e enxugou a testa. Sabia que estava errado sobre a conclusão de estar amando uma completa desconhecida. Se conheciam há poucos meses, menos de três. Não iria deixar que esta suposição errônea interferisse tanto assim no seu cotidiano. Iria continuar ajudando os outros, qualquer um que lhe aparecesse. Seria como sempre foi, com um sorriso franco e largo. Voltou decidido para a sua sala, esperando a primeira pessoa que viesse lhe procurar para lhe oferecer seu ombro amigo.

Ao caminhar para lá, viu uma silhueta sentada em sua poltrona. Revigou-se. Recompôs-se, ajeitando o nó da gravata e buscou entrar na sua sala com sua alegria de volta. Fechou a porta, e sem olhar, deu um largo: - "Esperava você, mas não tão cedo" - ao falar isto, virou-se. Ficou chocado. Anete sentava ali, cabisbaixa, com seu rosto turvando-se em lágrimas de desespero e de um profundo vazio existencial. Ela meramente olhou para ele, fingindo um sorriso falso de não-dor e voltou a abaixar sua cabeça. Desejava em seu íntimo ser acolhida em um momento tão singular de sua vida.

Prudente aproximou-se e ajoelhou-se perto dela. Com sua mão, levantou sua cabeça e disse: -"Tudo vai dar certo." - Anete quase sorriu de verdade desta vez, com um pequeno esforço. Deu de ombros e tentou abaixar sua cabeça mais uma vez, mas foi impedida por um gesto gentil de carinho. A mão tocou-lhe a face, ruborizando um pouco aquele rosto aturdido. Prudente puxou uma cadeira para perto dela e tocou-a na mão de leve, fazendo com que o soluçar de Anete ficasse um pouco menor.

Ela começou a despejar toda a sua angústia: tinha um casamento que havia falido há algum tempo, somente havia sido feliz no primeiro ano. Tinha uma mãe doente a qual devia ajudar e um irmão temporão que também ajudava financeiramente. Não dependia do marido e não suportava mais chegar até aquele lugar que um dia chamou de lar, fingir que gostava do marido, fingir que o chamava de amor. Não suportava mais não ter um carinho, uma palavra de afeto, algo que pudesse fazer com que todos os dissabores laborativos e de cunho pessoal angariados durante o dia fossem embora. Tinha raiva da sua própria situação escolhida, de como aquela história poderia ter desembocado nesta crise.

Prudente só ouvia e buscava conter sua próprias lágrimas. Estava ali somente para ajudar Anete e não para fazer com que ela ficasse pior do que já estava. Vigorasamente, se esforçava para que isto não acontece, se esforçou tanto que quase conseguiu. Anete percebeu isto e levantou-se, lhe pedindo imensas desculpas: tinha atormentado a única pessoa que tinha lhe estendido a mão em anos. Ela simplesmente não aguentaria ver alguém tão gentil sendo obrigado a ser enfiado goela a baixo todo aquele melodrama que tinha se tornado a sua vida. Caminhou em direção a porta.

Ao caminhar até lá, ouviu um pare, quase que sussurrado entre-dentes, quase que inaudível. Virou-se e se deparou com Prudente com a mão direita suspensa no ar, quase implorando pela sua volta. Um gesto singelo e com uma dose de candura. Anete não entendia o que tinha acontecido e voltou a sentar-se ao lado dele. Vislumbrou aquele homem que nunca deixava nada lhe abalar, nem mesmo as piores coisas sobre as pessoas; por isto tinha ido lhe procurar, sabia que teria ali uma palavra boa e amiga.

Ele não conseguiu se conter. Pegou em sua mão. O coração de Anete sobressaltou-se, quase como se fosse ser cuspido pela boca. Colocou suas duas mãos sobre a de Anete e olhou nos olhos. Havia tanta amargura dos dois por motivos diferentes, tantas dores do cotidiano que deixam todos nós loucos, tantas facetas possíveis de ser humano presentes naquele pequeno espaço de tempo, tanto do não-dito tão habitual em nossas vidas, tantas brigas... Mas também tanta necessidade de dar e receber afeto, tamanho sentimento de bem-querer de um para com o outro, tanto... E aconteceu. Aconteceu o beijo.

Tímido, reconfortante, porém um beijo que se emoldurava perfeitamente entre aqueles dois lábios tão carentes de uma paixão. Do tímido foi avançando para um maior conhecimento daquelas bocas, das línguas, dentes, salivas... Tocaram-se a face com as mãos para sentirem aquele momento tão especial e romântico que há muito não acontecia na vida de nenhum dos dois. Um gosto de amor era sentido pelos dois e exalado por toda aquela pequena sala.

Ele parou. Tinha ultrapassado todos os seus limites de honestidade, do respeito a convenção social sobre o casamento, sobre todo o ato sagrado que revestia o matrimônio de duas pessoas. Envergonhou-se. Anete o encarou fundo, porém de maneira suave, como se advinhasse o que tivesse acontecido. Respirou fundo, tocou-lhe a mão e lhe disse: -"Você é muito especial para mim. Espero que possa entender o que vou lhe dizer: "Nada do que eu faça é para magoar você. Eu adoro você." Espero que possa saber, também, o que significa esperar."

Saiu de sua sala. Prudente, mais perdido do que um cego no meio a um tiroteio dentro de um cubículo, não sabia mais o que fazer. Foi para casa e tomou um porre homérico, sentindo-se o próprio herói romântico do século dezoito ou, melhor ainda, o típico personagem das tragédias gregas. Tinha infringido o seu dever de respeitar a moralidade, mas gostava tanto daquela mulher que passou por cima de tudo isto. Lembrava das peças trágicas que tinha assistido quando era mais novo: -"Ai de mim, Deuses... Ai de mim... Por que comigo, deuses?"

No dia seguinte, quase se arrastando, chegou ao seu escritório. Colocou sua pasta sobre a mesa, e tomou uma decisão. Iria falar com Anete de que tudo não tinha passado de um grande engano, que tudo não passava da culpa da carência excessiva dos dois, que tudo iria ficar enterrado no passado e que não passaria de uma mera aventura casual. Com passos firmes, caminhava até o escritório de Anete. Aguardou a sua secretária anunciá-lo e adentrou o enorme e charmoso escritório dela.

Anete fez sinal para ele sentar na cadeira a frente de sua mesa, saindo de sua cadeira e indo sentar ao seu lado. Prudente olhou-a e sentiu seu cérebro congelar. As palavras, antes quentes e decididas com um bom café preto bem forte, tinham minguado para um carioca muito fraco, daqueles de quando a padaria vai fechar e ele tem mais ou menos três horas de ter sido feito. Titubeou ao tentar falar algo, quando foi interrompido.

Anete agradeceu por ele ter vindo, não teria coragem de ter ido até a sua sala. Aquelas palavras fizeram a alma de Prudente prender o fôlego. Ele realmente estava certo sobre a atitude que iria tomar, só iria esperar que ela a tomasse. E ela não a tomou. Ficou estarrecido. Anete disse que nunca tinha experimentado algo como aquele beijo, nem visto aquilo em qualquer filme romântico nem em qualquer livro. Nem mesmo quando via seu ator preferido no filme, inunando seus sentidos de uma paixão platônica adolescente.

Apaixonara-se por Prudente. Pediu-lhe tempo para poder arrumar a sua vida, para que pudesse se estruturar a fim de que pudessem ter um possível relacionamento. Após todo aquele sentimento, ela sabia que seu casamento já tinha que ser descartado como uma mão ruim de pôquer, sem nem mais adiantar blefar para consegui o prêmio da mesa. E o prêmio daquela mesa não era nada além do pingar original do início. Era inútil.

Prudente concordou, contanto que pudessem se encontrar, mesmo sabendo que isto iria prolongar a decisão de Anete, pois iria alimentar o que ela mais desejava sem que ela precisasse sair da sua situação. Iria momentaneamente correr este risco porque precisava tanto dela quanto a flor precisa da chuva e do sol. Por enquanto, seria esta a decisão que aquele, digamos, casal, iria tomar. Se Anete iria tomar a decisão ou se Prudente iria esperar por ela... Este já é um tema para o próximo capítulo, sendo construindo a cada pequeno dia. A cada imensa saudade. A cada intensidade de amor.

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