segunda-feira, 26 de abril de 2010

Stênio e Anastácia

Chovia naquela segunda-feira chuvosa. Uma figura taciturna estava sentada no ponto de ônibus, aproximadamente às onze horas da manhã. Deixava-se molhar pela chuva, como se a mesma pudesse limpar todas as dores de sua alma torturada e cansada pelo contínuo fracasso de sua pífia existência. Sentia-se apagado ao ver as pessoas caminhando, rindo, indo em direção a um trabalho... Um trabalho que Stênio não mais possuía.


Era tido como um brilhante aluno na faculdade de administração. Exímio em contas e em resoluções de problemas, deixava seus mentores orgulhosos em relação a como podia ter idéias incríveis e originais em questões de momentos. Invejava seus colegas pela sua capacidade; as alunas novatas ficavam entusiasmadas de como um veterano podia ser tão simpático, solícito e inteligente. Ele traçava todas elas.

Até que se apaixonou por Natasha. Possuía os olhos verdes, loira, branca como a neve - como ele gostava - e inteligente. Casaram-se logo depois que ele se formou e enquanto ele arrumava um estágio na mesma empresa em que iniciara carreira. Eram o casal perfeito: partiam para trabalhar, almoçavam, iam para a faculdade (ele para a pós-graduação como bolsista e ela para se formar) e voltavam para a casa juntos. Durou cinco anos este mar de rosas e felicidades.

O cinza do cotidiano começou a amargar a relação. Após ela ter tido a primeira filha, tornou-se cada vez mais autoria no lar, influindo na baixa auto-estima que Stênio fazia questão de esconder para todos. Ninguém desconfiava que era tão fácil derrubá-lo porque o mimetismo social que ele fazia era perfeito: falava de maneira fluída, desinibida e carismática - um líder nator.

Começou a cometer pequenos erros no trabalho que o frustavam mais ainda. Sua esposa que antes o apoiava, começou a tomar decisões contra o setor de Stênio: havia crescido na empresa por ter caído nas graças de um diretor. Evoluiu muito mais rápido e de maneira muito menos competente que seu marido, mas nem sempre em empresas privadas os bons sobrevivem sempre. Após a volta da segunda licença-maternidade, chutou Stênio tão longe que o coitado não conseguiu se recuperar.

Perdeu o emprego, vivia do seguro-desemprego e do dinheiro de sua demissão sem justa causa. Mudou-se para um apartamento de dois quartos que havia decorado para as duas filhas. Sua mulher ingressou com um processo junto ao judiciário para afastá-lo, dado o caráter violento do pai. Ludibriou, subornou, mentiu: conseguiu o que queria. Tinha, ali, naquele fatídico dia, quebrado a espinha dorsal do último resto de senso de estima de Stênio.

Mudou-se para um pequeno apartamento, um cubículo de quarto e sala. Chorava noites a fio, entregue a uma depressão tão profunda que nada o conseguia tirar da cama. Quando de lá saía, era para comprar bebida. Foi decaindo do whisky doze anos importado para um de oito; depois passou para um nacional, a vodka... Ia se depreciando cada vez mais até que estava sentado no ponto de ônibus, nesta segunda-feira chuvosa, com uma garrafa de vodka de plástico, tão barata que congelava ao se colocar no refrigerador.

A garrafa por um instante rolou da sua mão e foi em direção a rua. Ele apenas observava, incrédulo, que até seu último consolo neste vida tinha rolado de suas mãos entorpecidas pelo álcool de uma dor incurável. Foi dando passos cambaleantes até seu prédio, sendo eterno subalterno de seu vazio existencial. Resolveu, antes de abdicar em definitivo de uma existência inútil e sem sentido, se despedir da única pessoa que ainda o ancorava neste mundo desprezível.

Uma prostituta chamada Anastácia - diga-se de passagem, adorava mulheres com nomes russos e de pele branca - conversava com Stênio. Não que fossem imensos e grandes amigos, mas ao menos tinham dividido um pedaço de pizza fria e um refrigerante quente vez por outra. Stênio tinha curiosidade para saber como ela conseguia fazer o que fazia. Ela deu de ombros e falou: - "Na necessidade e falta de capacidade pra coisa melhor..." Isto o constrangeou imensamente. Nunca mais voltaram a este assunto.

Ele bateu à sua porta.Ela tinha acabado de acordar e atendera, com aquelas típica remelas e olhos inchados, mas já com um cigarro na mão. Ele, ainda ensopado pela chuva, apenas a abraçou. Verteu uma lágrima de seus olhos, a única sentida. Mesmo no ponto de ônibus, onde elas abundavam, passavam despercebidas, só quando lhe tocavam a boca sentia o seu gosto de sal. Ali não. Ele percebeu que uma única lágrima escorreu, a sua última.

Virou-se e murmurou algo, um grunhido, algo que nem ele nem Anastácia compreenderam. Voltou ao seu apartamento e pegou as fotos de suas filhas. Lembrou que ainda pagava um seguro de vida associado a sua conta que estava no limite do cheque especial e do vermelho de empréstimos. Empurrou as contas atrasadas da mesinha da sala e apoiou-se nela. Lembrou do seu tempo de infância quando fora Lobinho e pegou uma corda que guardava de recordação onde praticava seus nós. Fez o nó mais perfeito, digno de suas medalhas da infância. Apoiou a corda na viga e prendeu-a bem. Pegou as fotos de suas filhas e beijou. Segurava-a na mão.

Quando ia colocar a cabeça no pescoço, bateram na sua porta. Resolveu ignorar, provavelmente mais um cobrador do cartão ou, quem sabe, o senhorio que desejava receber os meses de aluguel atrasado. Acertou o nó para o seu último e derradeiro suspiro, mas a intervenção do som cortou-lhe o que estava fazendo. Resolveu acabar de vez com aquela interrupção para que pudesse dar cabo do que queria fazer.

Abrindo a porta era Anastácia. Ela olhou em seus olhos e por trás de seus ombros e reparou no que Stênio estava prestes a fazer. Ele percebeu e sentiu-se acuado, como a criança que é pega no ato ao tentar se apropriar indebitamente do seu conteúdo antes que sua mãe permita. Enconstou no batente da porta e deslizou por ela lentamente, debulhando-se em lágrimas. Soluçava tanto que por vezes lhe faltava fôlego.

Anastácia o ajudou a levantar e levou até o banheiro. Lavou o seu rosto com suavidade. Enxugou-o. Depois de abraçá-lo confortavelmente, levou-o até seu apartamento e fez-lhe café. Tomou gole pequeno. Stênio estranhava tamanho carinho por parte de um ser humano: sentia-se o cachorro do mendigo, expulso de cada relação afetiva e profissional com a exatidão de um franco-atirador e a potência de seu rifle de caça. Foi quando Anastácia tocou sua mão e lhe explicou.

Uma noite, os dois mais bêbados do que gambá (a expressão usada por ela), ela se insinuou sexualmente para ele, mas com uma libido real e juvenil. Ele a recusara, dizendo que estava bêbado demais para lembrar do que iria acontecer ali e velou por seu sono aquela noite. Voltou ao seu apartamento e dormiu sozinho na sua cama. Ele realmente não se lembrou de nada daquela noite.

Stênio sentiu, naquela hora, quase que um estalo de auto-estima criptando em uma fogueira de acampamento já velha e cheia de toras queimadas e carbonizadas. Neste momento, teve mais um gesto de gentileza daquela mulher tão sofrida. Levou-o até o banheiro e fez-lhe a barba. Tirou todos aqueles pêlos extras por fazer que ficaram não se sabe quantos meses naquela face.

Naquele momento, Stênio fez-lhe uma promessa: iria mudar. Não por ele, que considerava sem solução para aquela vida, apenas aguardava a próxima. Iria mudar porque aquela mulher tão desprezada e maldita pela sociedade, mas a quem várias mulheres deviam a suas vidas de casadas pela sua habilidade sexual memorável, para que ela pudesse ter algo digno em sua vida. Algo do que ela pudesse se orgulhar. Anastácia chorou com tal demonstração de afeto e Stênio começou a procurar emprego para que pudesse dar realidade a sua palavra.

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