quarta-feira, 16 de junho de 2010

Nélio e um dia de trabalho...

Nélio era um proeminente advogado. Trabalhava em uma notória firma de direito tributário. Era noivo de Emanuella, uma médica dois anos mais velha do que ele. Eles tinham um bom relacionamento. Ele, um típico canceriano, gostava da paz que um bom relacionamento trazia. Ela, capricorniana, tinha aquela necessidade grande de trabalhar para poder não dar relevância aos seus problemas pessoais. Não que ela fosse uma pessoa ruim, longe disto. Apenas era ansiosa, como ele também.


Em uma quarta-feira, Nélio chegou ao trabalho um tanto quanto desconfiado. Notava que seu superior, que era um grande amigo, pouco trocava palavras com ele após uma avaliação 360 que tinha sido realizada duas semanas antes. Aquilo poderia ser um indicativo de que poderia haver algo de podre no reino da Dinamarca, mas ele pouco se importava com aquilo e continuava a realizar o seu trabalho.

Por volta das dez horas da manhã, recebeu um telefonema do departamento de Recursos Humanos para que lá comparecesse. Gelou. Tinha medo de que fosse demitido, várias e várias coisas lhe percorreram a cabeça. Ajeitou o nó da gravata em uma tentativa de que aquilo fosse lhe dar o centro necessário para prosseguir. Caminhou, até lá, de uma maneira a tentar acalmar-se. Parou em frente a porta e a abriu.

Observou que o superior do departamento no qual trabalhava estava lá junto com o diretor dos Recursos Humanos. Jamil, o superior, lhe dera os parabéns. Ele seria ali promovido para uma outra área como chefe do setor. Nélio, por sua vez, soltou um suspiro aliviado e cumprimentou os dois chefes. Ele voltou para sua mesa muito feliz. Ligou para uma floricultura e mandou entregar um belo buquê de lírios para sua amada.

Após voltar do almoço, não tinha recebido nenhuma ligação de Manu. Resolveu ligar para ela. Emanuella estava com uma voz atravessada, para lá de mal humorada. Ao passo que Nélio perguntou o porquê, ela disse que iria sair de um dos plantões que ela fazia e que ela estava preocupada com a situação financeira. Nélio falou para ela que seria bom, mas ela o cortou no meio do caminho. Falou que estava chateada com várias coisas e nem o ouviu. Nélio recolheu-se e falou que iria ligar para ela mais tarde. Não havia dado tempo de dar a sua boa notícia.

Nélio tentou esquecer aquela pequena desavença e voltou a trabalhar; estava preparando seu último relatório para que fosse cumprido o prazo de até as seis horas daquele mesmo dia. Pediu auxílio da sua estagiária, que sempre flertou com ela. Ela parecia muito mais amável naquele dia. Ele sempre a cortara, não deixando que ela pudesse ter qualquer tipo de esperança. Naquela hora, porém, ele até aceitou o flerte momentâneo.

Trocaram algumas palavras com algumas segundas intenções, mas nada que fosse além de pequenas coisas. Ao pedir para que ela fosse pegar alguns livros e faturas, ele colocou sua mão direita sobre a mesa e observou a sua aliança. Brincou no dedo com ela, girando-a. Lembrou-se de quando a deu para Emanuella, em uma cantina italiana que eles sempre gostaram, ao som de um belo violino.

Nesta hora, seu celular tocou. Observou que era Manu. Respirou fundo, preparando-se para uma conversa que não seria frutífera. Ao atender, notou que a voz dela estava pequena do outro lado, como se sentisse acuada. Ela pediu desculpas pelo jeito que o havia tratado, agradeceu imensamente as flores. Ele, enfim, contou as suas novidades. Ela chorou, um pouco. Deu um pequeno soluço e disse para ele que sentia muito. Após isto, ele apenas pediu para que ele resolvesse as suas coisas.

Ela tomou um susto. Perguntou como ela poderia resolver suas coisas. Ele, sorrindo largamente, falou que ela devia enfrentar seus problemas e nunca deixar as coisas para a última hora. Falou que os dois eram ansiosos e deviam sempre procurar planejar e resolver, nunca postergar. Era um hábito deles, mas que ele fazia para ela as resoluções porque achava necessário.

Falou que de agora em diante, iriam dividir esta responsabilidade; que a amava e que a iria esperar em casa com um bom vinho. Lembrou que iria ajudá-la neste caminho e que também precisaria da ajuda dela, para sempre poderem andar de mãos dadas rumo a um belo futuro. Ela sorriu, agradeceu novamente o carinho que ele tinha para com ela e também lhe prometeu uma boa surpresa. Ao desligar, Nélio também sorriu e percebeu que tinha tudo o que precisava para ser feliz com Emanuella.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Arinaldo e Brendha

Arinaldo era um homem de meia-idade que não havia crescido. Ele tinha congelado seus sentimentos na sua infância e parte do início da sua adolescência. Possuía aquele olhar ingênuo e um coração doce. Procurava sempre ser gentil com todos que encontrava e buscava ajudar as pessoas. Tirava do que possuía, por muitas vezes, para poder doar.


Morava em um humilde apartamento, com muitos livros. Na verdade, o apartamento de dois quartos tinha um totalmente ocupado por livros. Ele gostava muito da leitura. Passava grande parte dos seus dias lendo e observando as pessoas. Ganhava seu dinheiro escrevendo sobre as pessoas e sobre ele próprio, sempre se disfarçando em um personagem ou outro.

Todas as garotas do colégio que nunca lhe deram bola se transformavam em suas musas inspiradoras. Seus contos eram matizados por uma tristeza sincera e uma incapacidade de suas personagens mudarem seus comportamentos em relações ao cotidiano. Sempre que se encontravam diante de uma indecisão, suas personagens resiganavam-se a sua própria mediocridade e se recolhiam nos mais recôndito lugar de suas almas.

Um dia, meio que por acaso, Arinaldo sentiu-se em um de seus contos. Encontrou uma das meninas pela qual era apaixonado na adolescência, Brendha, em um restaurante chinês no qual almoçava todas as terças. Demorou aproximadamente um mês para que pudesse trocar uma única palavra com ela, tudo isto porque ela se aproximou e esbarrou nele. Ele simplesmente verbalizou:

-"Desculpe." - Deu de ombros e quando estava indo embora, ouviu uma voz.

-"Arinaldo?" - Disse ela, com um sorriso nos lábios - "Há quanto tempo que não nos vemos. Como você está?"

Ele reparou que ela em nada tinha mudado. Possuía a mesma pele branca, algumas marcas de espinha na pele e seus atípicos olhos negros. Conversaram durante horas sobre amenidades, coisas do colégio e até do seu cotidiano. Ela era viúva, agora e ele nunca havia se casado; na verdade, nunca havia chegado perto de ter um relacionamento duradouro no qual ele não precisasse pagar para ter companhia. Trocaram telefones.

Ele, então, ao chegar no seu apartamento, escreveu durante horas. Seus dedos doíam a cada tecla que digitava no seu computador. Estavam vermelhos, doridos, mas mesmo assim ele prosseguiu. Chegou a escrever mais de cinquenta páginas naquele dia. Caiu exausto. No dia seguinte, não teve coragem de ligar para Brendha. Continuou escrevendo durante quatro dias. Enviou para o seu editor um romance lindo, mas este era diferente dos demais contos e romances. Este tinha um final feliz.

Estava resignado, como todos os seus personagens. Até o do seu recente romance tinha sido assim: a sua amada platônica teve que tomar a iniciativa. Lembrou disto enquanto estava deitado no seu sofá da sala. Escutou o seu celular tocou e se dirigiu até ele. Viu que era o número de Brendha. Segurou o celular na mão, observou e não atendeu. Ficou feliz de tê-la imortalizado no seu romance.

Alguns meses se passaram enquanto ele se dirigia para a sua noite de autógrafos. Odiava aquilo porque odiava intimidade com as pessoas. Preferia as observar de longe, de onde pudessem quase ser controladas com suas percepções e suas técnicas psicológicas defensivas. Naquela noite, porém, só o vinho salvaria sua já patética insanidade. Decidiu autografar todos os livros que lhe fossem enfiados goelas abaixo.

Um dos livros, porém, chamou-lhe atenção. Não tinha a capa de sua editora e sim uma capa personalizada, com uma foto sua e seu nome. Olhou para a mão que lhe tinha entregue. Era uma mão feminina, unhas bem feitas e tonalizadas com a cor violeta. Continuou seguindo e observou uma pulseira de ouro com pedras com a cor parecidas as das unhas. Ao continuar o caminho daquele alvo braço, encontrou o rosto de Brendha.

Ele, desnorteado, levantou-se e foi para fora da livraria. Começara a precipitar a chuva. Ele se sentia desolado e inerte por sempre ser daquele jeito. Iria voltar para dentro para tomar a atitude que poderia mudar a sua vida. Parou diante da porta e virou de costas. A chuva aumentou. Encostou-se no poste da frente, voltando sua face para cima, para apreciar cada gotícula de sua incapacidade. Fechou os seus olhos.

Sentiu um toque na sua face, acarinhando-o. Era Brendha. Olhou-o bem profundamente em suas janelas da alma e deu-lhe um beijo na face. Ele sorriu, tirando o rosto, quase como se não merecesse o beijo. Ela o acarinhou de novo. Desta vez, ele conseguiu reagir a sua baixa-estima. Ele, agora, foi de encontro aos lábios dela, tocando-os com os seus. Abraçou-a e deixou uma lágrima escorrer pelo seu rosto. Ele tinha conseguido mudar, como os seus personagens. Graças a uma iniciativa acolhedora de uma mulher pela qual sempre teve sentimentos verdadeiros.

domingo, 13 de junho de 2010

A uma mulher fascinante

Nas minhas horas mais doridas
Tu me sorristes com teus olhos
O doce néctar da esperança

Curastes minhas chagas
Com o acalento de teus abraços
Sempre com compaixão
Não és médica só de homens, mas de minh´alma

És, além de minha companheira
Uma mulher para toda a minha vida
Com teus lábios molhados
Toca-me como menhuma outra

Orgulho-me de teu doce pedaço do céu
E tão tentador inferno
Sempre ao alcance de minha imaginação

És a fonte dos meus anseios
E desejos mais ocultos
És uma fada amorosa
Podendo a todos eles realizar

Quero sempre te embalar em meus braços
Recostar tua cabeça em meu peito
E ser, minimamente, o que desejas
Pois sempre me esforço para ser o que mereces

Não sei definir tua imensidão
Nem a profundidade do que sinto
Contento-me, apenas, em amar-te

Amarei-te ontem menos do que hoje
Hoje, menos do que amanhã
Fronte de júbilo
Mulher de regozijo interminável

Ardo por ti agora e de novo
E a cada dia quero-te mais
Nas infinidades de nossas noites
Nas impossibilidades de nossos dias

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Do casulo a borboleta - A coragem de ter fé em si

Vivemos na nossa própria solidão. Apreciamos as outras pessoas para não observarmos o quão sozinhos estamos. Quando nascemos, não temos mais alguém que nos acalente e nutra todas as horas do dia. Passamos, então, a interagir com um mundo que é maior do que o anterior e mais estranho; frio, quando deveria ser quente. Este frio vai modelando parte das nossas relações humanas. Chama-se decepção.


Crescemos e vamos aprendendo como vamos conquistando a atenção do outro. Buscamos sempre uma forma de procurar ter aquilo que nos atrái. Nem sempre conseguimos. Ao conseguirmos, procuramos tratar daquilo como a melhor coisa do mundo. Podemos, por vezes, enjoar daquele brinquedo antigo. Então, colocamos ele na prateleira. Mas as pessoas não são como brinquedos: elas vão embora, quando percebem que não mais temos aquele amor tanto por elas quanto dizíamos.

Perdemos. E quando perdemos, ou na iminiência de perder, tentamos dar o valor que achávamos que devíamos antes de temer a perda. Pode ser tarde demais... Ou pelo motivo errado, de simplesmente não querermos perder ou pelo motivo certo, de procurarmos valorizar aquilo por nos ser caro (nos ser especial). O tempo é crucial neste tipo de situação para que o outro não perceba que podemos estar agindo pelo motivo errado.

Quando há a percepção do outro neste sentido, poderíamos usar a analogia de Hegel para o Senhor e o Escravo. Ao escravo perceber que é mais importante para o senhor do que o senhor para ele, ele se liberta. Então, o que acontece com nós mesmos, aqueles que tentaram resgatar o outro é que percebemos que perdemos. E, ao perdermos, sabemos que não nos pertence mais. Somente pertenceu enquanto agíamos daquele modo.

Esta é uma questão para nos libertarmos de nós mesmos. Os elefantes são amarrados com correntes a um pequeno cotoco de madeira. Ao não conseguirem fugir, eles simplesmente se acomodam naquela situação. Ao crescerem, não precisam de cordas mais fortes nem cotocos maiores: eles simplesmente vão ficar ali amarrados e nunca mais sairão daquela espécie de zona de conforto.

Este é o passo para nos conhecermos, nos libertarmos. Podemos ser como lagartas toda a vida ou arriscarmos sermos as borboletas. Para isto, porém, temos que entrar em um escuro casulo dentro de nós mesmos e maturarmos nossa própria idéia de liberdade, não importa quanto tempo dure. O verão há de vir, como diria o poeta, e ele virá somente para aqueles que tiverem paciência. Acrescentaria eu, para aqueles que tiverem paciência e amor.

Nunca sabemos o que poderemos encontrar em uma nova esquina, mas devemos fundamentalmente nos aventurarmos naquela nova esquina para sabermos o que podemos encontrar. Basta olharmos para dentro de nós mesmos e respirarmos fundo: poderemos encontrar tesouros enormes, diamantes lapidados dentro de nós mesmos... Tudo porque podemos ter tido alguém que nos mostrou nosso interior com uma luz linda - o nosso próprio reflexo no espelho.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Almerinda - Primeira Parte

Almerinda era uma linda mulher, com seu um metro e setenta cinco, uma pele branca como a neve e macia como seda. Seus cabelos e olhos negros como o espaço sideral, geravam um contraste encantador. Tinha um porte nobre, com um rosto doce e firme. Era extremamente racional na maioria de suas atitudes, padecendo de uma ansiedade enorme na sua área emocional. Sua voz, um pouco rouca, era apreciada e complementava todo aquele belo ser que ela era.

Quando ingressou na faculdade de direito com seus dezenove anos, festejou muito. Vinha de uma família humilde e sempre estudava muito para conseguir o que queria. Sua dedicação em sala de aula rendeu-lhe elogios de vários professores, e chamou até a atenção de um dos administradores do curso. Enamorou-se por ele nos últimos dois anos de faculdade e tudo estava bem. Ao formar-se, foi pedida em casamento por ele. Vilar lhe deu um pequeno anel, mas ela pouco se importava com o tamanho. Apreciava o carinho que ele tinha para com ela.

Iniciaram o processo de marido e mulher como muitos recém-casados: algumas dificuldades, mas compensavam isto com o companheirismo que nutriam. Não que Vilar fosse a mais fina flor do campo, mas a amparava minimamente quando ela precisava. Vez por outra, até perguntava como tinha sido o dia de trabalho dela. Comemoram quando ela conseguiu a vaga em um conceituado escritório no centro da cidade. Ele iria exercer o que mais gostava: Direito Trabalhista.

Estes foram os seus primeiros dois anos. Almerinda dedicava-se a sua profissão e buscava criar um harmonioso lar: procurava sempre fazer pequenos carinhos ao seu amado, embora percebe-se que ele estava um pouco distante. Isto a machucava, vez por outra, mas nada com que ela não pudesse lidar. Com o passar de alguns meses, porém, o casamento tinha virado uma espécie de campo infértil, de onde nada poderia surgir.

Ela fez uma viagem surpresa para uma praia em Fernando de Noronha que Vilar tinha mencionado uma vez. Isto manteve algo de bom por alguns outros meses, mas depois havia sempre aquela rotina, aquela imensidão de espaço denso entre duas pessoas que sempre deveriam estar ali, uma para a outra. Almerinda decidiu fazer mais surpresas, mas todas foram refugadas por seu marido.

Nunca irá esquecer que tinha feito uma cesta surpresa de dia dos namorados com várias coisas interessantes para usarem. Ela lembra a sensação até hoje, de como ele simplesmente agradeceu e a empurrou para o lado, enquanto lia o cartão todo especial que ela tinha feito. Após ler, colocou de lado. Levantou-se, foi na direção dela e beijou-lhe a testa. Foi para a sala e ligou a tevê. Ela lembra de ter sentido ser apunhalada pelas costas e ficou atônita em pé.

As poucas relações que mantinham sempre partiam dela. A procura de seu marido estava zero e sentia isto ao longo dos anos. Toda a paixão que tinham foi esmorecendo. Ele culpava o gênio ruim dela, suas grosserias por ter feito isto com ele. Ele, porém, nunca levava em consideração as poucas gentilezas e verdadeiras grosserias que ele fazia com ela com o mero intuito de se manter à frente do relacionamento. Ele buscava se valorizar na relação desvalorizando o que ela era.

Quase sete anos se passaram. A ascensão profissional de Almerinda aconteceu de uma maneira rápida demais para os outros, mas suficiente em como ela era boa no que fazia. Usava a falta de um leito quente e acolhedor para que pudesse despontar, para que fosse reconhecida minimamente no que fazia; o afeto que lhe faltava era enorme e deveria ver de algum lugar.

Seu marido também teve uma ascensão ao trocar de emprego. Com sua pós-graduação recém-adquirida, passou a trabalhar em uma firma que fazia auditoria. Viajava muito e sempre buscava trazer um souvenier para a esposa, por vezes até caro. Almerinda apreciava mais o tempo que ele ficava fora do que com ele em casa: a figura do seu esposo lembrava o fracasso que tinha se tornado o seu casamento.

Houve, porém, uma manhã chuvosa de segunda-feira de feriado. O clima era até amistoso, ela tinha cozinhado a refeição favorita dela. Ela lembra dele até ter elogiado, enquanto ela limpava os pratos. Sentiu-se bem com aquele afeto, por menor que fosse, pois dali poderia surgir algo. Após arrumar tudo, ela disse que iria descansar um pouco para ele. Eram duas da tarde.

Ao acordar, viu que estava sozinha na cama. Buscou-o pela casa. Nada, nem tinha um recado. Pegou no celular e viu que eram quase quatro horas. Ligou para ele e havia dado fora de área. Nervosa, ligou de novo. E outra vez. Parou na quarta. Apertou o celular com tanta força, como sentia o seu coração naquele momento. Não era a primeira vez que ele fazia isto, já havia se tornado um hábito, mas eles ali tinham quase tido um bom clima, estava minimamente aprazível.

Foi ao banheiro e ligou o chuveiro bem quente. Suas lágrimas começaram a minar de seus olhos, uma por uma. Limpou-as do rosto, na tentiva de não mais pensar em seus problemas. Tentou respirar fundo, tudo isto em vão. Elas voltaram a emergir com mais vigor, teve de se apoiar na pia do banheiro. Nem mais sabia quantas vezes tinha feito este ritual de chorar de raiva, de se culpar por tudo ter dado errado.

Foi para o boxe e escorreu pela parede do banheiro, sentando no chão frio. Havia soluços, lágrimas, balbuciava palavras sem sentido... Havia dor. A dor mais lancinante que já tinha sentido, incomparável com a das outras vezes. Arrastou-se até a água que caía e deixou que a ela se misturam-se suas lágrimas, suas angústias, tudo o que lhe pertubava, na esperança de que fossem ralo abaixo. Conseguiu, com o tempo erguer-se e banhar-se.

Observou o relógio, passava pouco mais das cinco. Arrumou-se e foi sentar-se em sua poltrona da sala, no escuro. Era inverno e tudo tornava o clima mais morto. Lembrou que fazia questão de dizer a si mesma que já havia se acostumado a ser infeliz, que o casamento não estava bom, mas era tudo o que tinha. Não queria correr o risco de perdê-lo, ainda mais por ser protestante. A sua religião a cobrava demais e sempre a impedia de se impor dentro da sua relação. Balançou a cabeça de leve, de uma lado para outro o outro e decidiu focar em outra coisa que atrapalhasse menos o seu processo decisório.

Observou bem a sala, bem a sua casa. Tentou organizar racionalmente tudo o que estava acontecendo, pesar numa balança. Conseguiu por alguns minutos, mas uma infinidade de sentimentos e de pensamentos percorriam-lhe o ser. Buscou, com calma e paciência, organizar toda a sua dor. Nunca havia discutido com Vilar até o ponto em que achava que devia, por entender que poderia dar um fim no seu relacionamento com ele. Hoje, ela iria jogar suas fichas na mesa e pagar para ver.

Quando ela escutou o barulho do carro dele estacionando, já era quase oito e meia. Esperou ele abrir a porta, viu a maçaneta rodando. Respirou fundo e lembra que bateu em ordem os dedos de sua mão direita três vezes, do dedo mínimo ao indicador, em sequência. Respirou fundo, pensando se realmente iria tomar aquele caminho. Tinha uma bifurcação em sua vida, com uma rota mais fácil e a outra mais difícil. Lembrou que tinha escolhido a rota mais fácil por tempo em demasia e que, na verdade, não era a mais fácil.

-"Por que saiu e não me avisou?" - perguntou ela, comedida. Ele se assustou, tentou se recompor. Procurou-a e acendeu a luz da sala. Pigarreou.

-"Eu não queria te acordar." - disse, seco.

-"Podia ter deixado um bilhete, ter me ligado... Gostaria que eu fizesse isso com você?"

-"Você nunca reclamou disso."

-"Eu sempre reclamei disto e você sabe muito bem."

-"Você nem me começa com isto, vai... Este seu gênio é ruim mesmo, não? Sempre disse para você que gostava de certa dose de liberdade e você fica marcando em cima como se fosse um zagueiro querendo me tomar a bola. Sabe do que mais? É por isto que eu não quero ter um filho com você... Já cansei de falar sobre isto!"

Ele sempre usava este argumento quando queria encerrar a discussão. Ela se recolhia, envergonhada de si mesma e saía de lá. Sentia-se como aquele cachorro de padaria que é enxotado. Tinha chorado tantas e tantas vezes, por tantas noites sozinha com isto: ela desejava ser mãe, com todas as fibras do seu ser; por isto se dedicava tanto em sua profissão, para que seu filho pudesse ter a parte material que tinha lhe faltado na infância.

Todas estas cenas lhe passaram pela cabeça em um micro-segundo. Respirou fundo. Ela tinha decidido ir em frente. Ela não sabe bem da onde ou como iria fazer aquilo, mas decidiu que não mais poderia ser refém de si mesma, refém da sua própria covardia. Iria arriscar, mesmo que fosse perder tudo. Resolveu, ali, pagar para ver de verdade. Sentiu um pedaço de paz, como se sentisse um amigo colocando a mão no seu ombro aquela hora. Sabia que estava tomando a atitude certa.

-"Eu estou cansada de você sempre usar este argumento comigo, Vilar." - Falou de maneira calma e pausada. Tinha readquirido a sua paz de espírito com aquela atitude -  "Afinal, não poderíamos ter um filho mesmo, não é? Há meses você não me procura. E não é o meu gênio ruim, não. É a sua falta de amabilidade que jogou a nossa relação neste poço sem fundo onde ela se encontra. O meu gênio você já conhecia quando nos casamos. O que eu desconheço é o seu desdém comigo. Mas, agora chega, não vou ficar lhe acusando de mais nada. Quer saber do que mais? Eu desisto."

Ele se assutou. Ela nunca havia tomado aquela atitude. Sua tez tencionou e seu olhos quase saltaram de suas órbitas. Algo havia acontecido e ele não sabia como reagir. Embora fosse uma epifania de uma tragédia já anunciada pelo seu comportamento parco de amor e porco no tratar, ele se desesperou. Procurou ele, agora, respirar.

-"Olha, não desiste... Ainda podemos ter um filho e..."

-"Não é isto..." - disse ela - " Eu desisto de você. Aliás, anos mais tarde do que você desistiu de mim. Eu passei somente a ser um maldito objeto de decoração aqui dentro desta casa, Vilar. Tudo o que fiz nestes anos por nós você jogou ao vento. Eu cansei disto tudo. Cansei de você. Não queria que acabasse assim, mas acabou. Peço somente respeito pelo que vivemos e que possamos fazer isto de uma maneira amistosa."

Os minutos seguintes foram de argumentação dele, completamente rechaçada por ela. Tinha decidido que tinha que confiar no seu instinto de buscar algo novo, algo que fosse melhor do que aquilo. Sabia o que não queria e o seu primeiro passo seria abandonar o que estava vivendo, mesmo que fosse para viver somente ela com seus vários gatos. Poderia até ser uma senhora sozinha, mas preferia ser sozinha do que mal-acompanhada. Seus trinta e três anos de vida lhe permitiam recomeçar a vida. Sentiu-se insegura ao lembrar de sua idade. Foi quando Vilar lhe deu a certeza de que não mais a queria por não confiar nela.

Ele leventou a possibilidade dela ter um amante. Não que isto a tivesse ofendido. Uma antiga professora de Direito de Família dizia que "Quando não se tem comida na rua, procura-se fora.". Até arrependeu-se por nunca ter tido um. Sorriu e lhe respondeu que não tinha, embora até tivesse tido oportunidade para ter vários. Ele ficou chocado. Quando ela perguntou se este era o motivo da ausência dele, ele apenas calou-se e deu de ombros. Era tudo o que ela precisa para apenas confirmar a sua intuição inicial. E prosseguiram, até de maneira amigável, para o fim do matriônio, dividindo todo o patrimônio.

Almerinda resolveu mudar para um outro bairro e comprou uma casa. Havia tirado aquele mês de férias para poder arrumar a sua vida. Desejosa de vida nova, decorou-a com um ar mais moderno, algo que sempre lembrasse do quão difícil e do quão especial tinha sido para ela se dar uma segunda chance. Na segunda sexta-feira das férias, via sessão da tarde regada a pipoca, brigadeiro e um guraná bem gelado. Ria muito sozinha, divertindo-se como há muito não o fazia, com sua recém-conquistada Carta de Alforria.

Enquanto arrumava a bagunça das panelas, escutou a campainha. Ela ficou feliz, deveriam ser os livros novos que tinha pedido pela internet. Tinha voltado a ler romances, coisa que havia deixado de fazer para dedicar seu tempo ao seu ex-marido. Calçou os chinelos e foi em direção ao portão. Deu uma ajeitada no cabelo em frente ao espelho antes de atender a porta. Tinha recuperado a sua vaidade, sua auto-estima que tinha deixado sob o tapete de sua sala de estar na primeira briga que tinha tido com Vilar. Mas isto era passado agora, ela estava com um belo presente em suas mãos. Estar sozinha lhe fazia bem. Porém, mal sabia ela o que a esperava ao abrir aquela porta...
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