domingo, 5 de setembro de 2010

Saber viver

Augusto era um extraordinário advogado. Possuía uma virtuose para a área de família, conhecendo todos os meandros da lei. Seu discurso, sempre eloquente e com enfâse humana sobre o assunto, arrebatava os juízes até mais do que suas petições, sempre perfeitamente fundamentadas. Sentia-se vivo no tribunal e no escritório. O único lugar em que não se sentia assim, por mais paradoxal que fosse, era na sua própria residência.

Era casado há cinco anos com Joyce, uma enfermeira. Conheceu-a através de sua irmã, também formada na área. Depois de algumas saídas, enamoraram-se. Não que fosse algo quente e tórrido; era morno. Augusto, fã de literatura e um ator frustrado, sabia que toda aquela sofreguidão romântica e aquele sentimento de amor pregado ali era meramente imaginativo; pragmaticamente, aquilo nunca poderia dar certo. Uma pessoa que povoa o seu pensamento durante tanto tempo apropriasse indevidamente uma parte da vida.

Casaram depois de três anos de namoro. Foi uma cerimônia simples, sem Igreja. Joyce preferiu assim. O primeiro ano de casamento até foi bom, mas o resto foi meramente ladeira abaixo. O que já era morno passou a ser somente frio. Os poucos lugares onde havia temperatura eram nas horas das brigas, em que ele pedia reconhecimento por tudo o que fazia pelo casal e ela friamente respondia que não era mais do que obrigação dele dar-lhe afeto. E que se quisesse algo a mais, procurasse outra.

Tendo sido criado por uma religião rígida, Augusto nunca admitia esta hipótese. Engolia sempre a seco e buscava uma maneira de tentar agradá-la. Porém, com o tempo, até isto foi a míngua. Ele, resignado, admitiu que era possível viver infeliz. Fez tanto isto da sua vida que, em quatro anos, até acreditou nesta possibilidade. O mundo lhe parecia cinza, havia deixado de ler. Seus discursos perdiam o vigor, mas a sua técnica e fama ainda o faziam um espetacular praticante do direito.

Até que, certo dia, pouco depois de seu aniversário de trinta e cinco anos, Sophia apareceu na sua vida. Ela era uma estagiária, recomendada pela faculdade na qual havia se formado. Já àquela época, era uma lenda dentre os estudantes. Seus ecos chegaram até os ouvidos daquela jovem de vinte anos. Na entrevista, Augusto percebeu uma tatuagem e perguntou de onde era. Ela, meio que dando de ombros, falou que também fazia teatro nas horas vagas.

Depois de algumas semanas, houve uma ocasião bem singular. Ao passar pela sala da jovem, observou-a chorando. Como era perto da hora do almoço, resolveu-a convidar para tal e aproveitaria para entender o que se passava na vida daquela jovem. Ela relutou, mas apreciou o convite. Conversaram durante bastante tempo sobre o namorado dela, que não reconhecia o esforço empregado por ela para um futuro melhor. Tal foi a intimidade adquirida pelos dois, que Augusto interveio diferente. Não foi no sentido de colocar falsos panos quentes, como até fazia com os clientes em primeiro momento. Ele simplesmente disse para ela:

-"Temos que ter pessoas do nosso lado que nos dêem segurança e nos apóiem em nossas empreitadas. Nada pior do que algo morno e que nem isto tenha.".

Ela ficou chocada. Ele pediu desculpas e relatou também o que passava. Ao final, um clima denso se formou. Sofia, contudo, rapidamente agiu falando sobre peças de teatro. Augusto emendou o assunto e toda aquela aura cinza dispersou-se. Estranhamente, Augusto relembrava aquela conversa o dia inteiro. O entusiasmo daquela jovem, o brilho em seus olhos, seu sorriso pontual e na hora certa, o seu cheiro... E que cheiro! Tinha a eterna sensação de que ela possuía um aroma de flores do campo.

Chegando a casa, naquele dia, olhou para Joyce. Queria sentir aquilo que sentiu por aquela jovem naquele dia. Queria sentir um calor, um amor gostoso depois da longa e dura jornada que tinha sofrido durante todo o dia. Adentrou a sala sorrindo e ela nem lhe deu bola. Apenas fingia que concordava quando ele falava dos ocorridos. Esticou o braço para ele e falou que não queria jantar, mas que tirasse algo da geladeira que a empregada tinha feito. Depois de alguns minutos, ela reclamou de tudo: da empregada, daquela casa, do modo como ele arrumava as coisas, da ligação da mãe dele preocupada com Joyce (ele havia fraturado o ante-braço e estava de licença); Augusto encolhia-se no sofá, sentindo-se acuado e cada vez menor dentro do que deveria ser seu refúgio. Foi dormir.

No dia seguinte, percebeu algo diferente quando acordou para o trabalho. O fato de Joyce ter-lhe negado sexo não o aborreceu. Sentiu-se até aliviado, como se o tivessem o livrado de uma obrigação. Tomou seu banho e arrumou-se cuidadosamente, até mais do que o habitual. Fazia questão de usar terno de dois botões, com gravata combinando com um lenço, abotuaduras e uma camisa listrada com punhos e gola branca. Achava-se charmoso assim. Colocou seu perfume, um amadeirado e seu relógio.

Ao chegar ao escritório, adiantou algumas coisas e foi ao tribunal. Levou Sophia consigo para ela ver como é estar em um. Em seus discursos, notava que ela a observava com admiração, quase um louvor. Isto apenas aumentava o seu combustível, sentia-se vivo de novo. Como poderia apenas um olhar, uma presença, uma lembrança torná-lo mais e melhor do que ele já era? Não quis questionar este fato, apenas resolveu apreciar aquele momento.

Apreciou, na verdade, vários momentos que se seguiram. Seus almoços com Sophia se tornavam constantes, sempre mais dedicados em suas conversas. Ela já havia se separado do "traste" como ela o chamava. Ele, por sua vez, admirava a coragem dela para tanto. Em um destes almoços, sua mão esbarrou delicadamente na dele, na tentativa de alcançar o sal. Ele olhou para a mão dela e em seus olhos. Sentiram, os dois, o mundo parar. Era como se fossem o centro do universo. Ele tocou em sua mão com a da direita, segurando-a gentilmente e carinhosamente. O que aconteceu ali não poderia ser descrito na mais bela canção. Haviam se enamorado.

Algo tenro, gentil e quente. Algo que acalentava um coração velho e sem esperança de amor e um de uma jovem, uma pulsão de vida. Pareciam que se conheciam há uma eternidade e que tinham sido criados um para o outro. Augusto, quebrando o clima, pigarreou. Aquela situação o assustara. Apenas comeram e foram embora. Naquele dia, chegando a casa, Augusto não sabia o que fazer. Queria de alguma forma compensar sua mulher e a chamou para sair. Ela aceitou. Não se divertiu nada, nem um pingo. Parecia que o pouco que tinham um pelo outro havia acabado.

Ele não conseguiu dormir. De manhã cedo, pediu para conversarem. Falou de suas necessidades de afeto, de carinho de algo vivo; ela, com desdém, apenas falou para ele que se não estivesse satisfeito, que fosse embora da casa dela. Eles haviam comprado a casa juntos. Ia se resignar de novo, quando lembrou de tudo o que havia feito por eles, de todos os sacrifícios em nome do casal. Ele sempre a amava tanto, acalentava-lhe e estimulava-lhe a vencer na vida, e tudo o que tinha em troca era um vazio. Não queria mais estar obrigado naquilo. Desta vez, ele iria fazer algo para mudar o seu destino.

Era um sábado, disto ele nunca vai esquecer. Fez uma parte da sua mala sob os protestos dela; gritos, xingamentos, confusões. Tudo era confuso, como se ele tivesse entrado em uma colméia, mas nenhuma das abelhas o tocassem. Ele já não mais sentia nada por aquela mulher, nem desejo. Era um mero sentimento de costume. Um amor acostumado, adptado, remendado ao cotidiano e a uma exigência mínima de afeto. Não mais serviria aquilo para ele. Decidiu, então, ser feliz.

Não com pouco custo; houve processos, brigas, até alguns barracos protagonizados por sua ex-mulher. Tudo isto, porém, ficou mais leve e mais tranquilo. Não se importou tanto com sua redução patrimonial, mas sim com o que podia ver além. E um conhecimento grato que Deus havia enviado para ele - Sophia. Ela era tudo o que ele havia sonhado, um amor tórrido e despudorado. Mas, acima de tudo, uma verdadeira companheira.

Após isto tudo, a maré havia abaixado. Alguns meses se passaram na calmaria, quando Augusto resolve ter uma conversa séria com Sophia. Após a sua formatura e apresentação, eles resolveram começar sobre o rumo que aquele relacionamento estava tomando. A tez dele ficou séria e ela não entendia o porquê. Ele sacou de seu bolso um anel e a pediu em casamento, de joelhos, junto com um buquê de gérberas. Ela aceitou, emocionada. Casaram-se sob as bençãos do pastor da Igreja de ambos.

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