quinta-feira, 3 de junho de 2010

Almerinda - Primeira Parte

Almerinda era uma linda mulher, com seu um metro e setenta cinco, uma pele branca como a neve e macia como seda. Seus cabelos e olhos negros como o espaço sideral, geravam um contraste encantador. Tinha um porte nobre, com um rosto doce e firme. Era extremamente racional na maioria de suas atitudes, padecendo de uma ansiedade enorme na sua área emocional. Sua voz, um pouco rouca, era apreciada e complementava todo aquele belo ser que ela era.

Quando ingressou na faculdade de direito com seus dezenove anos, festejou muito. Vinha de uma família humilde e sempre estudava muito para conseguir o que queria. Sua dedicação em sala de aula rendeu-lhe elogios de vários professores, e chamou até a atenção de um dos administradores do curso. Enamorou-se por ele nos últimos dois anos de faculdade e tudo estava bem. Ao formar-se, foi pedida em casamento por ele. Vilar lhe deu um pequeno anel, mas ela pouco se importava com o tamanho. Apreciava o carinho que ele tinha para com ela.

Iniciaram o processo de marido e mulher como muitos recém-casados: algumas dificuldades, mas compensavam isto com o companheirismo que nutriam. Não que Vilar fosse a mais fina flor do campo, mas a amparava minimamente quando ela precisava. Vez por outra, até perguntava como tinha sido o dia de trabalho dela. Comemoram quando ela conseguiu a vaga em um conceituado escritório no centro da cidade. Ele iria exercer o que mais gostava: Direito Trabalhista.

Estes foram os seus primeiros dois anos. Almerinda dedicava-se a sua profissão e buscava criar um harmonioso lar: procurava sempre fazer pequenos carinhos ao seu amado, embora percebe-se que ele estava um pouco distante. Isto a machucava, vez por outra, mas nada com que ela não pudesse lidar. Com o passar de alguns meses, porém, o casamento tinha virado uma espécie de campo infértil, de onde nada poderia surgir.

Ela fez uma viagem surpresa para uma praia em Fernando de Noronha que Vilar tinha mencionado uma vez. Isto manteve algo de bom por alguns outros meses, mas depois havia sempre aquela rotina, aquela imensidão de espaço denso entre duas pessoas que sempre deveriam estar ali, uma para a outra. Almerinda decidiu fazer mais surpresas, mas todas foram refugadas por seu marido.

Nunca irá esquecer que tinha feito uma cesta surpresa de dia dos namorados com várias coisas interessantes para usarem. Ela lembra a sensação até hoje, de como ele simplesmente agradeceu e a empurrou para o lado, enquanto lia o cartão todo especial que ela tinha feito. Após ler, colocou de lado. Levantou-se, foi na direção dela e beijou-lhe a testa. Foi para a sala e ligou a tevê. Ela lembra de ter sentido ser apunhalada pelas costas e ficou atônita em pé.

As poucas relações que mantinham sempre partiam dela. A procura de seu marido estava zero e sentia isto ao longo dos anos. Toda a paixão que tinham foi esmorecendo. Ele culpava o gênio ruim dela, suas grosserias por ter feito isto com ele. Ele, porém, nunca levava em consideração as poucas gentilezas e verdadeiras grosserias que ele fazia com ela com o mero intuito de se manter à frente do relacionamento. Ele buscava se valorizar na relação desvalorizando o que ela era.

Quase sete anos se passaram. A ascensão profissional de Almerinda aconteceu de uma maneira rápida demais para os outros, mas suficiente em como ela era boa no que fazia. Usava a falta de um leito quente e acolhedor para que pudesse despontar, para que fosse reconhecida minimamente no que fazia; o afeto que lhe faltava era enorme e deveria ver de algum lugar.

Seu marido também teve uma ascensão ao trocar de emprego. Com sua pós-graduação recém-adquirida, passou a trabalhar em uma firma que fazia auditoria. Viajava muito e sempre buscava trazer um souvenier para a esposa, por vezes até caro. Almerinda apreciava mais o tempo que ele ficava fora do que com ele em casa: a figura do seu esposo lembrava o fracasso que tinha se tornado o seu casamento.

Houve, porém, uma manhã chuvosa de segunda-feira de feriado. O clima era até amistoso, ela tinha cozinhado a refeição favorita dela. Ela lembra dele até ter elogiado, enquanto ela limpava os pratos. Sentiu-se bem com aquele afeto, por menor que fosse, pois dali poderia surgir algo. Após arrumar tudo, ela disse que iria descansar um pouco para ele. Eram duas da tarde.

Ao acordar, viu que estava sozinha na cama. Buscou-o pela casa. Nada, nem tinha um recado. Pegou no celular e viu que eram quase quatro horas. Ligou para ele e havia dado fora de área. Nervosa, ligou de novo. E outra vez. Parou na quarta. Apertou o celular com tanta força, como sentia o seu coração naquele momento. Não era a primeira vez que ele fazia isto, já havia se tornado um hábito, mas eles ali tinham quase tido um bom clima, estava minimamente aprazível.

Foi ao banheiro e ligou o chuveiro bem quente. Suas lágrimas começaram a minar de seus olhos, uma por uma. Limpou-as do rosto, na tentiva de não mais pensar em seus problemas. Tentou respirar fundo, tudo isto em vão. Elas voltaram a emergir com mais vigor, teve de se apoiar na pia do banheiro. Nem mais sabia quantas vezes tinha feito este ritual de chorar de raiva, de se culpar por tudo ter dado errado.

Foi para o boxe e escorreu pela parede do banheiro, sentando no chão frio. Havia soluços, lágrimas, balbuciava palavras sem sentido... Havia dor. A dor mais lancinante que já tinha sentido, incomparável com a das outras vezes. Arrastou-se até a água que caía e deixou que a ela se misturam-se suas lágrimas, suas angústias, tudo o que lhe pertubava, na esperança de que fossem ralo abaixo. Conseguiu, com o tempo erguer-se e banhar-se.

Observou o relógio, passava pouco mais das cinco. Arrumou-se e foi sentar-se em sua poltrona da sala, no escuro. Era inverno e tudo tornava o clima mais morto. Lembrou que fazia questão de dizer a si mesma que já havia se acostumado a ser infeliz, que o casamento não estava bom, mas era tudo o que tinha. Não queria correr o risco de perdê-lo, ainda mais por ser protestante. A sua religião a cobrava demais e sempre a impedia de se impor dentro da sua relação. Balançou a cabeça de leve, de uma lado para outro o outro e decidiu focar em outra coisa que atrapalhasse menos o seu processo decisório.

Observou bem a sala, bem a sua casa. Tentou organizar racionalmente tudo o que estava acontecendo, pesar numa balança. Conseguiu por alguns minutos, mas uma infinidade de sentimentos e de pensamentos percorriam-lhe o ser. Buscou, com calma e paciência, organizar toda a sua dor. Nunca havia discutido com Vilar até o ponto em que achava que devia, por entender que poderia dar um fim no seu relacionamento com ele. Hoje, ela iria jogar suas fichas na mesa e pagar para ver.

Quando ela escutou o barulho do carro dele estacionando, já era quase oito e meia. Esperou ele abrir a porta, viu a maçaneta rodando. Respirou fundo e lembra que bateu em ordem os dedos de sua mão direita três vezes, do dedo mínimo ao indicador, em sequência. Respirou fundo, pensando se realmente iria tomar aquele caminho. Tinha uma bifurcação em sua vida, com uma rota mais fácil e a outra mais difícil. Lembrou que tinha escolhido a rota mais fácil por tempo em demasia e que, na verdade, não era a mais fácil.

-"Por que saiu e não me avisou?" - perguntou ela, comedida. Ele se assustou, tentou se recompor. Procurou-a e acendeu a luz da sala. Pigarreou.

-"Eu não queria te acordar." - disse, seco.

-"Podia ter deixado um bilhete, ter me ligado... Gostaria que eu fizesse isso com você?"

-"Você nunca reclamou disso."

-"Eu sempre reclamei disto e você sabe muito bem."

-"Você nem me começa com isto, vai... Este seu gênio é ruim mesmo, não? Sempre disse para você que gostava de certa dose de liberdade e você fica marcando em cima como se fosse um zagueiro querendo me tomar a bola. Sabe do que mais? É por isto que eu não quero ter um filho com você... Já cansei de falar sobre isto!"

Ele sempre usava este argumento quando queria encerrar a discussão. Ela se recolhia, envergonhada de si mesma e saía de lá. Sentia-se como aquele cachorro de padaria que é enxotado. Tinha chorado tantas e tantas vezes, por tantas noites sozinha com isto: ela desejava ser mãe, com todas as fibras do seu ser; por isto se dedicava tanto em sua profissão, para que seu filho pudesse ter a parte material que tinha lhe faltado na infância.

Todas estas cenas lhe passaram pela cabeça em um micro-segundo. Respirou fundo. Ela tinha decidido ir em frente. Ela não sabe bem da onde ou como iria fazer aquilo, mas decidiu que não mais poderia ser refém de si mesma, refém da sua própria covardia. Iria arriscar, mesmo que fosse perder tudo. Resolveu, ali, pagar para ver de verdade. Sentiu um pedaço de paz, como se sentisse um amigo colocando a mão no seu ombro aquela hora. Sabia que estava tomando a atitude certa.

-"Eu estou cansada de você sempre usar este argumento comigo, Vilar." - Falou de maneira calma e pausada. Tinha readquirido a sua paz de espírito com aquela atitude -  "Afinal, não poderíamos ter um filho mesmo, não é? Há meses você não me procura. E não é o meu gênio ruim, não. É a sua falta de amabilidade que jogou a nossa relação neste poço sem fundo onde ela se encontra. O meu gênio você já conhecia quando nos casamos. O que eu desconheço é o seu desdém comigo. Mas, agora chega, não vou ficar lhe acusando de mais nada. Quer saber do que mais? Eu desisto."

Ele se assutou. Ela nunca havia tomado aquela atitude. Sua tez tencionou e seu olhos quase saltaram de suas órbitas. Algo havia acontecido e ele não sabia como reagir. Embora fosse uma epifania de uma tragédia já anunciada pelo seu comportamento parco de amor e porco no tratar, ele se desesperou. Procurou ele, agora, respirar.

-"Olha, não desiste... Ainda podemos ter um filho e..."

-"Não é isto..." - disse ela - " Eu desisto de você. Aliás, anos mais tarde do que você desistiu de mim. Eu passei somente a ser um maldito objeto de decoração aqui dentro desta casa, Vilar. Tudo o que fiz nestes anos por nós você jogou ao vento. Eu cansei disto tudo. Cansei de você. Não queria que acabasse assim, mas acabou. Peço somente respeito pelo que vivemos e que possamos fazer isto de uma maneira amistosa."

Os minutos seguintes foram de argumentação dele, completamente rechaçada por ela. Tinha decidido que tinha que confiar no seu instinto de buscar algo novo, algo que fosse melhor do que aquilo. Sabia o que não queria e o seu primeiro passo seria abandonar o que estava vivendo, mesmo que fosse para viver somente ela com seus vários gatos. Poderia até ser uma senhora sozinha, mas preferia ser sozinha do que mal-acompanhada. Seus trinta e três anos de vida lhe permitiam recomeçar a vida. Sentiu-se insegura ao lembrar de sua idade. Foi quando Vilar lhe deu a certeza de que não mais a queria por não confiar nela.

Ele leventou a possibilidade dela ter um amante. Não que isto a tivesse ofendido. Uma antiga professora de Direito de Família dizia que "Quando não se tem comida na rua, procura-se fora.". Até arrependeu-se por nunca ter tido um. Sorriu e lhe respondeu que não tinha, embora até tivesse tido oportunidade para ter vários. Ele ficou chocado. Quando ela perguntou se este era o motivo da ausência dele, ele apenas calou-se e deu de ombros. Era tudo o que ela precisa para apenas confirmar a sua intuição inicial. E prosseguiram, até de maneira amigável, para o fim do matriônio, dividindo todo o patrimônio.

Almerinda resolveu mudar para um outro bairro e comprou uma casa. Havia tirado aquele mês de férias para poder arrumar a sua vida. Desejosa de vida nova, decorou-a com um ar mais moderno, algo que sempre lembrasse do quão difícil e do quão especial tinha sido para ela se dar uma segunda chance. Na segunda sexta-feira das férias, via sessão da tarde regada a pipoca, brigadeiro e um guraná bem gelado. Ria muito sozinha, divertindo-se como há muito não o fazia, com sua recém-conquistada Carta de Alforria.

Enquanto arrumava a bagunça das panelas, escutou a campainha. Ela ficou feliz, deveriam ser os livros novos que tinha pedido pela internet. Tinha voltado a ler romances, coisa que havia deixado de fazer para dedicar seu tempo ao seu ex-marido. Calçou os chinelos e foi em direção ao portão. Deu uma ajeitada no cabelo em frente ao espelho antes de atender a porta. Tinha recuperado a sua vaidade, sua auto-estima que tinha deixado sob o tapete de sua sala de estar na primeira briga que tinha tido com Vilar. Mas isto era passado agora, ela estava com um belo presente em suas mãos. Estar sozinha lhe fazia bem. Porém, mal sabia ela o que a esperava ao abrir aquela porta...

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