segunda-feira, 19 de abril de 2010

Alice e Méleo

Alice era uma das melhores bailarinas de sua Companhia. Ninguém performava um solo como ela ou era uma parceira tão boa de palco quanto ela. Alice vivia a dança de uma maneira intensa, quase como se fosse uma experiência espiritual. Entrava praticamente em transe quando se vestia para o espetáculo. Vivia este mundo de uma maneira tão exacerbada que poderíamos dividir em seu mundo em dois: o mundo real e o seu próprio domínio da fantasia quando estava no seu mundo orínico da arte.

No palco, conseguia ver perfeitamente o Lago dos Cisnes: o gelo, os animais em uma revoada, pequenas pessoas que ela imaginava que paravam, vez por outra, para observarem aquela história fascinante que ali se desenrolava. No mundo real, tudo lhe parecia meio cinza, meio amargo. Amarescente, aliás, era o gosto que constantemente aparecia na sua boca em meio às tarefas mundanas.

Não apreciava o seu lar; um pai alcoólico, ausente, a tratava como um mero eletrodoméstico velho. Não apreciava sua filha e somente a tinha do seu lado para receber a pensão de sua falecida esposa. Não trabalhava e vivia sua embiaguez dia-à-dia com o provento que seria tão necessário para que Alice pudesse alçar vôos cada vez maiores em seu cotidiano, para que aquele deixasse de ser o cotidiano de Alice e passasse a ser somente uma lembrança do passado, uma recordação ruim como um daqueles filmes de terror.

Mas nada é como no País das Maravilhas, onde uma pequenina estranha pode mudar toda uma situação. Alice era claudicante em sua vida social, quase como se fosse uma sombra entre as pessoas. Nunca fizera questão de ter um relacionamento interpessoal, vivia única e exclusivamente para a sua arte. Seu ofício era oneroso para si: treinava aproximadamente oito horas por dia, todos os dias. No resto de seu tempo, escutava músicas, via outros tipos de dança. Buscava uma perfeição constante na sua própria realização.

Descendo a ladeira de sua casa, coisa que fazia habitualmente, intrigou-se com uma situação: havia um rapaz, ajoelhado de cócoras, com papéis na mão e uma caneta. Causou-lhe estranheza porque aquele outro não lhe parecia tão cinza: tinha traços de verde cintilante e dourado em sua cabeça. Ele tinha um volume de cores que a deixou observando-o durante um tempo. Percebeu que, durante este tempo, o rapaz apenas contemplava o que acontecia.

Ela deparou-se com o seu próprio tempo, eterno inimigo da precisão. Colocou-se a andar passadas largas para que pudesse chegar rápido ao seu ensaio. Tropeçou, sem querer, naquele jovem. Pediu desculpa e ele a retribuiu com um sorriso largo e acenou-lhe com a mão direita como se estivesse tudo bem. Alice parou mais um micro-momento e percebeu que o seu volume de cores tinha aumentado, mas não era hora para aquilo.

No seu ensaio, não entendeu como sua inteligência cinestésicao-espacial não a impedira de tropeçar em algo que já havia visto antes. Falhou em dois ou três passos durante o ensaio, sem saber exatamente o motivo. Aquela imagem daquelas cores não conseguia sair de sua cabeça, como se fosse algo que a consumia por dentro. Após o ensaio, voltou a procurar aquela curiosa figura. Estava, ali a poucos metros do tropeço, agora encostado no tronco da árvore, em um galho. Observava a rua.

Alice olhou para ele como se perguntasse o que ele fazia ali. Ele pediu para que ela subisse para que compartilhasse do que ele via. Disse ele: - "Nem sempre, na vida, podemos observar nós mesmos, precisamos sempre do outro ou do mundo para nos observarmos. Viu como as coisas mudam de perspectiva daqui do alto? Onde tropeçou em mim... " - apontou ele " nem parece tão significativo do ponto onde nos encontramos. Mas foi significativo ao tropeçarmos, não acha?"
Algo lhe subiu pela espinha, como que um raio vindo do cóccix até a sua medula. Como alguém poderia tratar algo tão banal com tamanha doçura e precisão de vocábulo? Fitou-lhe o rosto e percebia uma explosão de cores acontecendo na figura de sua fascinante companhia. Perguntou-lhe o seu nome.

-"Ah, que falta de educação a minha... Parece que guardei meus modos na gaveta. Pode me chamar de Méleo. Não me pergunte de onde minha mãe tirou este nome, mas esra é uma outra história. Tem uma carinha tão sonhadora... Seu nome tem gosto de A... Mas A de quê? Amanda, aquela que veio para ser amada? Ou Alice, da sonhadora personagem de Lewis Carrol?"

Alice assustou-se. Como alguém poderia desnudar-lhe daquela maneira, de um jeito tão sincero e carinhoso? Pendeu seu corpo para trás como se, insconscientemente, quisesse sair daquela situação constrangedora. Foi segura por seu acompanhante que, já àquela hora, parecia algo feérico em sua noite.
-"Por favor, fique mais um pouco, não precisa ir embora agora." - Sorriu-lhe um largo, muito mais bonito e colorido do que o do primeiro encontro - " Não se preocupe em me achar bruxo, perguntei por você para algumas pessoas. Só souberam me dizer seu nome, percebi que dançava pelos seus apetrechos que levava para algum lugar. Ficou curiosa para saber o porquê dos papéis?"

- "Sim" - disse ela, de uma maneira franca, porém tímida.

-"Sou poeta... Ou algo do gênero. Fiquei observando você também hoje e escrevi algumas coisas, mas só mostro se você aceitar jantar comigo hoje. Minha mãe é super-acolhedora com estranhas conhecidas minhas e meu pai parece mais um Hobbit do Tolkien, não vai se importar de receber mais alugém. Na verdade, vai fazer questão."

Alice não entendia mais nada... Ele era realmente um paciente que tinha escapado do sanatório local ou ele era mais uma de suas imaginações do palco que saltaram para a realidade sem que tivesse lhe contado nada e resolvera lhe pregar uma peça? Ainda no meio deste turbilhão, aceitou o convite. Nunca havia experimentado noite tão maravilhosa em toda a sua vida.

Comeu uma refeição familiar, sem que tivesse que cozinhá-la. Ouvi histórias do trabalho dos pais de Méleo, piadas do cotidiano da família, cobranças amigáveis sobre o seu desempenho escolar (era bom nas áreas humanas, mas não muito bom em química). Riram e se divertiram. Alice viu cores também naquela casa, cores que ela nunca acreditaria ver em casa alguma. A sua era quase negra, pairando uma aura de desgaste, como se fosse difícil se mover dentro dela para se atingir outro lugar. Uma casa vazia, porém densa.

Após ajudar a mãe de Méleo com os pratos, o rapaz a chamou para ir ver seus rabiscos poéticos. Eram lindos. Não só poesias, mas ele agora se especializava em contos, contos de cunhos existenciais e figuras de linguagens ricas, carregadas de signifcantes. O quarto dele parecia uma supernova de matizes. Li, lia e lia e não parava de se emocionar. Parou e sentiu um gelo no estômago e um calor pelo corpo ao se deparar com o título: "A uma pateticamente que precisava ser dançante". A data era daquele dia.

O conto descrevia a sua pressa, como se fosse o Coelho eternamente correndo. Admirou que o Coelho parou para observá-lo, um mero narrador, e evidenciou o fato do inconsciente daquela coelhinha em específico ter esbarrado nele. Descreveu aquele fato de "o melhor do não-dito é que ele tem uma carga muito mais saborosa de significados, gerando uma miríade de possibilidades de interpretação... Como a Cinderela, que deixou seu sapato no baile para ser encontrada mais tarde."

Alice sentiu um gogo na garganta. Ela tinha secado. Pigarreou de leve, sentindo o toque gentil de uma mão em seu ombro. Arrepiou-se desde a ponta do dedo mínimo até o último fio de seu cabelo. Virou-se e observou os olhos daquele poeta. Os dele brilhavam cada vez mais intensamente ao ver o seus olhos brilharem. Não entendia mais nada, nem precisava. Somente sentia a sua respiração.

A respiração passou a ser só o coração, só sentia o seu ritmo. Aumentou. Muito. A respiração encurtou, sua boca tornou-se ainda mais árida. Suas pupilas se dilataram e não conseguia escutar nada ao seu redor. As cores não haviam sumido, só eram intensas demais para serem percebidas naquele Big Bang de sentimentos que estava se formando de uma maneira elouquecedora, frenética... E houve o beijo.

Longo, demorado, molhado, apaixonado... E muitos outros beijos depois deste primeiro beijo. Carinhos e afetos, quase juras foram trocadas, mas o momento era de apenas ímpeto fervoroso da luxúria. Amaram-se intensamente e por tantas vezes que não seria possível contabilizar, quantificar em número o prazer que um gerava para o outro. Dormiram juntos, com Alice aconchegado em seu peito.

Alice tinha encontrado algo precioso em sua vida. Na sua atual idade, não poderia ainda sair da casa de seu pai sem um devido processo legal. Não que ele a agredisse e a renegasse: apenas não a amava. Alice esperaria um pouco mais de tempo até que pudesse administrar a pensão que sua mãe havia deixado para ela. Este foi um dado do qual ela nunca mencionou ao seu amante.

Tinha vergonha de viver naquela situação, por ainda depender daquilo que a agredia por não dar-lhe mais o que era necessário. Nunca o levou em sua casa. Iria magoá-lo demais ao fazer isto e preferiu apenas viver o momento, um passo de cada vez com aquele surpreendente rapaz. O tempo iria dizer o que o querer de um pelo outro poderia dizer, o quão longe poderiam ir. Ali seria o conto de fadas moderno, com toques de romantismo para que fosse o banquete para aquelas duas almas carentes e sinceras.

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